Disciplina - Cinema

Faça a coisa certa

O diretor norte-americano Spike LeeComo dito em outras ocasiões desta coluna fixa do Passeiweb, algumas universidades / faculdades, ao colocar filmes na lista obrigatória para análise em seu vestibular, buscam aguçar o senso critico dos vestibulandos. Esqueça decorar nome de atores: o foco aqui é a percepção do mundo e a ampliação do conhecimento.

Faça a coisa certa é um filme do diretor Spike Lee. Conhecido mundialmente por seu cinema de cunho engajado, o diretor é um dos representantes da causa negra. Entre os tantos filmes da sua cinebiografia, Spike Lee sempre está na linha entre a análise crítica social e a indústria cinematográfica. Há alguns casos de mea-culpa* com a cultura da mídia, algo praticamente impossível de não manter vínculo nos tempos de internet e a cada vez mais forte aderência ao capitalismo. Um filme, seja de alto ou baixo custo, precisa se vender, e diante disso, percebe-se que é impossível se manter de fora das estratégias mercadológicas. 

Antes de entrar na análise mais profunda, precisamos saber do que o filme trata. Na trama, temos Sal (Danny Aiello), um ítalo-americano, que é dono de uma pizzaria em Bedford-Stuyvesant, Brooklyn (lá também há um armazém cujos donos são coreanos). Com predominância de negros e latinos, o Brooklyn é uma das áreas mais pobres de Nova York. Sal é um cara boa praça, que comanda a pizzaria juntamente com Vito (Richard Edson) e Pino (John Turturro), seus filhos, além de ser ajudado por Mookie (Spike Lee), um funcionário. Sal cultua decorar seu estabelecimento com fotografias de ídolos ítalo-americanos dos esportes e do cinema, o que desagrada sua freguesia. No dia mais quente do ano, Buggin' Out (Giancarlo Esposito), um ativista local, vai até lá para comer uma fatia de pizza e se desentende com Sal por não existirem negros na "Parede da Fama" dele. Sal retruca dizendo que aquela parede é somente para ítalo-americanos e se Buggin' Out quiser ver fotos dos "irmãos" que abrisse sua própria pizzaria. Notando que não havia nenhum italiano para proteger Sal, Buggin passa o resto do dia tentando organizar um boicote contra a pizzaria. Este incidente trivial é o ponto de partida para um efeito dominó, que vai gerar vários problemas. Um desentendimento com Mookie o levou a enfrentar uma série de mal-entendidos, que resultaram em pancadaria. A polícia chega ao local e acaba matando um dos fregueses, transformando a confusão em tragédia.

Fazendo a coisa certa?

Entre tantas discussões, Faça a coisa certa é considerado um filme-denúncia dos negros, assim como o Rap fez na década de 80 nos EUA. Os negros pediam empregos, um lugar melhor na sociedade e menos submissão ao sistema. O filme faz alusão ao grupo extremista Panteras Negras, a Martin Luther King e Malcolm X, ao movimento musical Rap, aos negros estereotipados da cultura da mídia e ainda antecipa discussões que seriam expostas mais tarde, como o caso Rodney King e seus reflexos na sociedade americana. Para fins didáticos, iremos dividir este artigo em quatro partes. Nesta primeira, vamos expor a sinopse do filme e a sua importância numa lista de vestibular. Na segunda, discutiremos aspectos abissais da trama, além de tocar em questões encontradas nas teorias dos estudos culturais para explicar alguns aspectos do filme. Na terceira, faremos uma maior explanação do Rap e, por fim, discutiremos reflexos do filme na contemporaneidade e a relação com outros segmentos da prova do vestibular, como as obras literárias.

Ressalto que, mesmo o filme fazendo parte de uma lista isolada, não custa nada ao vestibulando conferi-lo, pois na verdade, analisado-se com o distanciamento correto, Faça a coisa certa torna-se um ótimo objeto de análise da cultura da mídia e da violência urbana, debatidos com veemência na contemporaneidade e nas provas de processos seletivos.

Faça a coisa certa e a cultura da mídia: por dentro dos estudos culturais

De uma forma geral, chamamos Estudos Culturais à disciplina que se ocupa do estudo dos diferentes aspectos da cultura, envolvendo, por exemplo, outras áreas como a história, a filosofia, a sociologia, a etnografia, a teoria da literatura etc. Trata-se de uma disciplina acadêmica onde é possível determinar a origem das coisas, sendo habitual ligar essa origem ao próprio desenvolvimento do pós-modernismo e às suas celebrações contra a alta-cultura e as elites sociais, aos seus debates sobre multiculturalismo que têm tido particular expressão nos Estados Unidos, à sua ênfase nos estudos sobre pós-colonialismo, que ajudaram a criar uma nova disciplina dentro dos Estudos Culturais, e às suas manifestações sobre cultura popular urbana, por exemplo.

Faça a coisa certa é um filme onde as personagens fazem a própria definição de identidade em termos de moda, consumo e estilo cultural. É daí que temos a ideia de cultura de mídia. Segundo o crítico cultural e ensaísta Douglas Kellner, a cultura da mídia e a de consumo atuam de mãos dadas no sentido de gerar pensamentos e comportamentos ajustados aos valores, às instituições, às crenças e às práticas vigentes. Em sentido mais amplo, a cultura é uma forma de atividade que implica alto grau de participação, na qual as pessoas criam sociedades e identidades. Dessa forma, a cultura modela os indivíduos, evidenciando e cultivando suas potencialidades e capacidades de fala, ação e criatividade.

A mulher no mundo de Spike Lee

Apesar de engajado, Spike Lee foi bastante criticado por abordar as mulheres negras de forma um tanto estereotipada. Quando não são megeras, aparecem relegadas ao âmbito das donas de casa, enquanto os homens têm vida ativa e pública.

As mulheres brancas surgem como um caso para se estudar separadamente. Tornam-se fetiches para os homens negros, assim como a sua derrocada. A maioria das cenas de sexo nos filmes de Lee transcorre à noite, e a iluminação ressalta bastante as diferenças de cor, reiterando o interesse quase obsessivo na cor da pele, presente nos filmes.

Faça a coisa certa e a linguagem do Rap

No senso comum, o Rap é um fórum cultural para expressar experiências, preocupações e visão política. Com isso, como fórum, é palco de diferentes tipos de rap. Alguns pregam a vida de gangster, drogas e atitudes misóginas. Outros usam para expressar valores e política.

O Rap germinou na década de 70 e se expandiu nos anos 80. Na maioria das vezes, era a tradução da raiva dos negros diante da crescente opressão e da diminuição das oportunidades de emprego.

Rhythm and Poetry ou Rap é o discurso rítmico com rimas, e um dos elementos da música e cultura hip hop. O Rap, comercializado nos EUA, desenvolveu-se tanto por dentro como por fora da cultura hip hop, e começou com as festas nas ruas nos anos 70, por jamaicanos e outros. Eles introduziam as grandes festas populares em galpões, com a prática de ter um MC, que subia no palco junto ao DJ e animava a multidão, gritando e encorajando com as palavras de rimas, até que foi se formando o Rap. A origem do Rap é jamaicana, mais ou menos na década de 60, quando surgiram os sistemas de som, que eram colocados nas ruas dos guetos jamaicanos para animar bailes. Esses bailes serviam de fundo para o discurso dos "toasters", autênticos mestres de cerimônia que comentavam, nas suas intervenções, assuntos como a violência das favelas de Kingston e a situação política da Ilha, sem deixar de falar, é claro, de temas mais polêmicos, como sexo e drogas. No início da década de 70 muitos jovens jamaicanos foram obrigados a emigrar para os Estados Unidos da América, devido a uma crise econômica e social que se abateu sobre a ilha. E um, em especial, o DJ jamaicano Kool Herc, introduziu em Nova Iorque a tradição dos sistemas de som e do canto falado e foi se espalhando e popularizando entre as classes mais pobres ate chegar a atingir a alta sociedade.

As grandes preocupações da década de 80 giravam em torno das seguintes polêmicas: Aids, gravidez na adolescencia, violência urbana e uso de drogas. Entre os representantes estão NWA, Public enemy, Queen Latifah, Ice T, Ice Cube e 2 Live Crew.

O rapper muitas vezes é como um ministro da Igreja: traz uma mensagem para seu público, que é transmitida de modo bem característico: assim como a igreja tem um coro, o rapper às vezes tem um coral de fundo. Há presença dos sons específicos: ruídos de carro de polícia, helicóptero, tiros e vidro quebrando. Qual o significado de tudo isso? O óbvio: o inimigo chegando!

Assim como os grafiteiros, os rappers muitas vezes utilizam pseudônimos. Por fim, o Rap constitui uma cultura de resistência contra a supremacia e a opressão dos brancos. Em vários momentos do filme, Spike Lee usa a expressão “Acordem!”, quase como um refrão emblemático dos seus filmes. Uma questão contraditória é que, em muitos casos, o rap é consumido pelos brancos de classe média.

Os negros americanos tem tradicionalmente usado a música e a linguagem musical como forma privilegiada de resistência à opressão. A música negra usou a cultura da mídia para disseminar seus significados, sons e vozes. Podemos daí, classificar: o gospel, reação à opressão da escravidão; com o blues, a reação ao sofrimento e opressão pela resistência à escravidão; o jazz e o ragtime baseavam-se nas experiências dos negros americanos em busca de uma linguagem musical que articulasse sofrimento e alegria, angústia coletiva e expressão individual.

Durante a década de 50, o rythm and blues se transformou no rock and roll, e artistas como Fats Domino e Chuck Berry ingressaram na cultura prevalecente.

Personagens marcantes de Faça a coisa certa

Há personagens bem marcantes em Faça a coisa certa. Eis que explanaremos os principais: Mookie veste camisa de beisebol de Jackie Robinson, símbolo da sua posição de negro que rompeu a barreira da cor no mundo dos brancos.

Radio Rafeem defende a solidariedade e a rebelião do negro para preservar a comunidade. Sal, o comerciante pequeno burguês é o símbolo do branco que veste a camisa da opressão. Seus filhos, Pino e Vito são bem dicotômicos: enquanto Vito é o filho racista, que usa camisas brancas, Pino não é racista e consequentemente, usa sem problema camisas negras. Buagin Out é um negro rebelde, usa camisas africanas amarela com uma corrente de ouro no pescoço e um dente de ouro. É um dos símbolos da revolta no filme. Já Mother Sister é a personagem que representa a maneira tradicional dos valores negros e matriarcais. Da Mayor usa roupas velhas e sujas, o que o codifica como um exemplo da negritude fracassada. Smiley, negro retardado que vive com as fotos de Luher King e Malcoml X.

Faça a coisa certa e aspectos da contemporaneidade

Alguns especialista consideram Faça a coisa certa um filme apocalíptico: o caso Rodney King, em maio de 1992, foi praticamente previsto pelo filme, anos antes. A sociedade já previa o que poderia acontecer caso as relações entre raças continuassem assim.

O personagem representado por Lee, Monkie, é representante das ideias de Malcolm X: olho por olho, dente por dente. Para ele, "dane-se a merda de dar a outra face para tapa", como pregava Luther King.

Apesar de ser um filme repleto de aspectos críticos para análises sobre a violência urbana mundial, racismo e estereótipos, Faça a coisa certa também se torna vítima de sua própria contradição: o consumismo é forte e a ênfase na construção da identidade por meio de roupas e moda, onde ninguém questiona as práticas consumistas.


Por Leonardo Campos
Graduando em Letras Vernáculas com habilitação em Língua Estrangeira Moderna - Inglês na UFBA. Membro do grupo de pesquisas “Da invenção à reinvenção do Nordeste” – Letras/UFBA. Pesquisador na área de cinema, literatura e cultura. Colaborador do PASSEIWEB.com

Resenha publicada no site Passeiweb. Todas as informações contidas nela são de responsabilidade do autor.
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