Disciplina - Cinema

Pele que habito, A

Cartaz do filme "A pele que habito", de Pedro AlmodóvarDenominamos Intertextualidade o diálogo que, por vezes, se mantém entre um texto e outro, uma obra e outra, uma referência ou inferências e outras. 

O cinema possui uma linguagem que consiste em imagens e sons, especificamente. Entretanto, desde os primórdios das produções audiovisuais muitos outros elementos de linguagem foram adotados pelo cinema, como texto, música e ilustrações, ferramentas complementares que ajudam na composição de uma obra cinematográfica. 

Os recursos de linguagens, no início da história do cinema, limitavam-se às imagens captadas em preto e branco, com câmera parada, às músicas e às telas de transição, contendo textos que serviam para complementar a atuação do elenco, cujo sucesso dependia da força da expressão corporal e facial. Era uma mistura um tanto artesanal de linguagens, porém com efeito híbrido, tal como ocorre hoje nos ambientes da Internet, ampliando-se os recursos dessa linguagem. Por meio dos recursos intertextuais utilizados pelo cinema, foi possível compreender além da imagem registrada na película. 

Atualmente, a indústria cinematográfica utiliza, intensamente, a intertextualidade, com o objetivo de ampliar a linguagem do cinema tradicional e oferecer ao público uma diversidade de textos e de elementos significativos. 

A partir dessa ideia, e buscando a dialogicidade da literatura com o cinema, a película A pele que habito, de Pedro Almodóvar, nos traz inúmeras possibilidade de trabalho, engendradas em uma narrativa tensa e emaranhada de possíveis leituras de “entrelinhas” e “além das linhas”, como numa teia, quando nosso mais alto poder de percepção é desafiado. 

Para iniciar, é fundamental destacar como umas das imagens-chave da narrativa desta obra a da tarântula (ou caranguejeira). Esta tem como importante característica o tamanho de suas pernas, com as quais captura e mantém sob seu domínio pequenos animais e, às vezes, até pequenos pássaros, roedores, anfíbios e outras aranhas. 

A imagem da tarântula perpassa todo o filme. Auxilia na apresentação de um quadro que exige um olhar atento do espectador, e principalmente a disposição de tocar em temas delicados como abuso infantil, poder paterno, verdade e mentira, questões de gênero, relações de poder, bioética, identidade. 

O filme nos conta a história do médico Robert, cuja esposa (Gal) o trai e acaba misteriosamente envolvendo-se num acidente de carro com o amante, que foge. Gal escapa da morte, mas fica com graves queimaduras, que Robert trata tanto quanto pode. Tempos depois, ela se suicida, o que gera um desequilíbrio mental definitivo na filha Norma, que passa anos trancafiada em um sanatório. 

Depois que a menina recebe alta, iniciando uma fase de ressocialização, vai a uma festa, durante a qual o pai a vê flertando com Vicente. Pensando que o rapaz violentou a filha, Robert o sequestra e, algum tempo depois, faz nele uma operação de mudança de sexo, mantendo-o preso em sua casa. Vicente – que agora se chama Vera – terá de encontrar formas de se manter equilibrado e vivo, de esconder suas reais intenções, até que consiga fugir. 

A pele que habito inspira-se na obra Tarântula, do escritor francês Thierry Jonquet, e faz referências também à artista plástica franco-estadunidense Louise Bourgeois, autora do livro A destruição do pai (um relato autobiográfico que aborda traumas infantis e domínio paterno) e da série de esculturas Maman (mamãe, em francês). As Maman constituem-se de enormes aranhas, com 10 metros de altura e 10 metros de diâmetro total, por meio das quais a artista aborda os cuidados maternos.

Destacam-se no filme vários elementos, entre eles:

a) Marília
• Robert não sabe que sua governanta (Marília) é, na verdade, sua mãe. Ela, porém, sabe de todos os planos do filho, e o defenderá até o final.
• Além de ser mãe de Robert, ela também gerou Zeca, o “Tigre” (que era o amante da falecida Gal), um homem desequilibrado, violento. Conforme opinião da própria Marília, “eu trago a loucura em meu ventre”, pois percebe que gerou dois seres loucos.
• O nome Marília remete à figura do "mar/água", um elemento tradicionalmente vinculado à vida. No entanto, ao mesmo tempo em que quer proteger seus filhotes, não abandona seu instinto destrutivo.

b) Vicente/Vera
• Após a operação de mudança de sexo, Vicente (que significa "aquele que vence”) passa a ser chamado de Vera (que significa “verdadeira”). Para sobreviver, precisa literalmente vencer o domínio da aranha Robert / Marília.
• Precisa, ainda, lançar mão de vários recursos, entre eles a camuflagem. Depois de ter o corpo transformado por Robert, Vicente (agora Vera) precisa transformar-se também interiormente. Ele tem um visual naturalmente andrógeno, e isso será sua estratégia para enganar Robert, que pensa que Vera gosta dele quando na verdade quer matá-lo.
• Vera afirma "... sempre fui mulher", mas seu gênero é indefinido, problematizando inclusive o significado de seu nome, um paradoxo. Robert várias vezes tenta “copular” com Vera, o que remete à relação de poder que ele quer estabelecer sobre sua presa. 

c) A importância da arte como forma de lidar com a angústia da vida
• No quarto (ou seria uma toca?) em que Vera é mantida, os canais de TV são totalmente controlados e só alguns são permitidos. Entre eles, um canal mostra um felino selvagem brincando com a presa – o que pode se relacionar com o poder de domínio de Robert.
• Vera, porém, encontra na ioga e na arte as chaves para conseguir separar forma e essência, e conviver com seus novos conflitos. Entre as obras que ela lê, encontra-se uma sobre Louise-Borgeois.
• Dentre as várias inscrições que Vera faz na parede, podemos ler a frase “A arte é a garantia da saúde”, bem como muitas vezes a palavra “respiro”.

d) Transferência, incesto
• Num primeiro olhar, temos a impressão que o objetivo de Robert é transformar Vicente em sua falecida esposa Gal. Várias vezes Marília menciona que ela “se parece com alguém”. Todavia, quando o psiquiatra de Norma recomenda que ele não a veja com tanta frequência é que notamos que o interesse de Robert em relação à filha é de natureza mais sexual do que protetiva, o que vai ao encontro da ferocidade com que transforma Vicente/Vera em Gal/Norma.
• Pode-se sugerir, portanto, que Vera seria a materialização das figuras tanto de Gal quanto de Norma, cuja inocência foi maculada pelas ações do próprio pai contra si e contra a mãe. 

e) Gênero e identidade
• Em uma das cenas do filme, sucedem-se as imagens de Robert, Vera e Vicente, o que pode sugerir que a película propõe a problematização da identidade das personagens - tanto no aspecto ontológico, quanto no de gênero. Essa discussão é traduzida, também, na escultura que mostra várias pessoas em contato físico, cujo sexo e gênero são difíceis de definir.
• Outro detalhe importante é a menção à proibição da utilização da transgênese, que, segundo argumentação de Robert, seria apenas mais uma aplicação clínica da evolução da genética. A palavra se confunde com o termo “transgênero”, uma das expressões dos debates sobre as questões de gênero.
• Em uma das cenas, Vera observa na TV a escultura de Louise Bourgeois, “Sete em uma cama” (2001)*, em que são representadas várias pessoas em contato, cujo sexo é praticamente impossível de ser definido. Além dessa obra da artista plástica, várias outras parecem explicitar a necessidade de discutir tais questões.
• Em sequência tensa e esclarecedora deste filme, a chegada de Zeca, o “Tigre”, à casa de Robert e Marília, percebemos que é carnaval e Zeca está fantasiado. Ele adentra à casa, come, bebe, amordaça a mãe e estupra Vera sem retirar um único acessório de sua fantasia de tigre. A partir dessas cenas pode-se observar que, mais uma vez, as questões de gênero e identidade estão presentes, pois o carnaval, tanto no Brasil quanto na Espanha, é uma festa pagã, e nesse período as pessoas podem ser quem elas quiserem, transformando-se, geralmente, em seres bastante diferentes do que são normalmente.

O nível de complexidade das discussões propostas por La piel que habito convidam a um segundo – e terceiro, e quarto – olhar. Não é à toa que o filme ganhou vários prêmios – entre eles o BAFTA e Cannes. Altamente recomendável! 

Referências
BOURGEOIS, Louise. Destruição do pai, reconstrução do pai. Traduzido por: Alvaro Machado, Luiz Roberto Mendes Gonçalves. São Paulo: Cosac Naify, 2001.
_____. Sete em uma cama, 2001, tecido costurado, aço, vidro e madeira. 
GONÇALVES, Elizabeth Moraes; RENÓ, Denis Porto. A montagem audiovisual como ferramenta para a construção da intertextualidade no cinema. Disponível em: http://migre.me/dN6ZL
Acesso em: 19 mar. 2013.
JONQUET, Thierry. Tarântula. São Paulo: Record, 2011.
A PELE que habito (La piel que habito). Pedro Almodóvar, Espanha, 133min.; 2011. 

Ficha técnica:
(La piel que habito), Suspense, Espanha, 2011, 133min.; COR. Direção: Pedro Almodóvar.

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Autoria: Professores Márcia Galvan e Aquias Valasco, do Portal Dia a Dia Educação - Ditec/Seed-PR.
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