Disciplina - Cinema

V de Vingança

 
O que, afinal, move o ser humano? Até que ponto, um ser desprovido de sua liberdade individual, pode ser controlado?
Essas perguntas, feitas a milênios, e nunca respondidas por completo, dando sempre margem a infinitas discussões e análises, podem ser consideradas nesta película, ajudando, talvez, o espectador, a encontrar, novamente, mais algumas respostas possíveis.

Trata-se de um filme de muita ação, adaptado pelos irmãos Wachowski (os criadores de Matrix) para o cinema, baseado na minissérie em quadrinhos V for Vendetta, de Allan Moore e David Loyd, publicada em meados dos anos 80. Traz, como pano de fundo, a "Conspiração da Pólvora", fato histórico que mostra a tentativa frustrada de um grupo de pessoas, descontentes com o governo, de explodirem o prédio do Parlamento, símbolo máximo da corrupção do governo da época, para matar o rei James I e algumas pessoas que faziam parte da cúpula do poder (essa idéia de que "destruir um prédio pode mudar o mundo" não lembra, ao leitor, sempre atento, algum fato recente?). Em uma das cenas iniciais, num diálogo bastante profundo entre a personagem principal V (Hugo Weaving) e sua cúmplice, Evey Hammond (Natalie Portmann), percebemos que o pensamento do herói vai ao encontro da necessidade, urgente, de mudanças no país: "Não há certezas, só oportunidades".

A Conspiração da Pólvora ocorreu em 05 de novembro de 1605 e até hoje é lembrada pelo povo inglês, que sai às ruas, nessa data, para "malhar" bonecos com a figura de Guy Fawkes, o homem encarregado de colocar os barris de pólvora no subterrâneo do prédio do Parlamento, uma das poucas pessoas que tinha acesso irrestrito ao edifício, além de saber manejar explosivos. A cena que abre o filme fala justamente sobre as idéias de Guy, nos fazendo pensar sobre os motivos que o levaram a "conspirar" contra o rei, bem como os motivos que levam V a propor, ao país, um basta ao autoritarismo imposto, obrigando a população a questionar os alicerces sociais e a política vigente. Nesse sentido, Moore coloca em V as bases do Anarquismo em contraponto a um Estado totalitário que vigia, censura e silencia.

Na adaptação para o cinema, o roteiro é alterado em muitas questões no que se refere à série em quadrinhos, atualizando-as para os nossos dias. Por exemplo, em lugar de uma guerra nuclear (minissérie), nas telas os ingleses assumem o poder por meio de atos terroristas, usando armas químicas e biológicas para alcançar os seus objetivos.

Desse contexto, somente o herói, denominado como V, sobrevive. Ele é um produto monstruoso do governo que quer destruir, tornando-se uma idéia, um símbolo político que repudia o controle e a censura, podendo ser percebido tanto como um terrorista (idéia que rapidamente o espectador descarta, pois passa a torcer pela vitória da personagem, no que diz respeito a alcançar os seus objetivos, pois quem tem "O Conde de Monte Cristo" como filme predileto, e deixa, sobre suas vítimas, Scarlet Carsons para simbolizar a liberdade de escolha e o amor, não pode ser mau sujeito!), como um defensor da liberdade, mostrando-se simpatizante do Anarquismo, porém não aceitando o caos. Esse pensamento fica claro quando V, numa conversa com Evey diz: "Anarchy means 'without leaders', not without order'. This is not anarchy, Eve. This is chaos", o que pode ser traduzido livremente por: " Anarquismo significa ausência de líderes, não ausência de ordem. Isso (ausência de ordem) não é Anarquismo, Eve, é o caos".

Durante o filme percebemos elementos que nos levam a relacionar o texto, dito pela personagem principal, novamente, aos princípios do Anarquismo, ideologia que não aceita a direção de um governo. Acredita que agir, tomar decisões e trabalhar em grupo, como uma comunidade, possibilita o exercício do livre arbítrio e da liberdade de expressão. As falas de V nos mostram exatamente isso: a ânsia pela justiça e pela liberdade, num país dirigido de forma totalitária, que se baseia na corrupção e é manipulado pela alta esfera de um governo corrupto. No decorrer da história somos apresentados a uma forma política de governar na qual as pessoas são constantemente monitoradas, as liberdades individuais extintas e as obras literárias, musicais e demais manifestações artísticas, consideradas subversivas e, por isso, proibidas.

Nesse aspecto, o filme pode ser relacionado ao livro 1984, de George Orwell, também adaptado para o cinema, com direção de Michael Radford, que trata de tema semelhante, num país governado de modo semelhante e com pessoas com semelhante descontentamento pela falta de liberdade individual.

Em 1984, Winston Smith é o protagonista de uma história em que qualquer forma de liberdade é cerceada. As pessoas vivem e morrem pelo Partido, que governa e direciona a vida e o pensamento de todos. Uma teletela, instalada na casa de todos os integrantes do Partido, auxilia a monitorar, dia e noite, os passos e os pensamentos das pessoas. Somente a prole não sofre monitoração constante, nem tem teletelas em suas casas, pois o governo acredita que estão "sob controle", pois são apassivados pelas inúmeras misérias a que são submetidos (mais alguma coincidência, caro leitor?).

Existe, ainda, a figura do Grande Irmão, que incita, na população, todos os pensamentos e informações que o Partido quer que tenham e saibam. Já em V de Vingança esse papel é desempenhado pela "Voz de Londres", programa de TV realizado pela personagem Prothero (algoz de V no passado), que tenta manipular informações e fazer uma verdadeira "lavagem cerebral" na população em favor das atuações do governo, assim como a personagem do chanceler Sutler (John Hurt) que faz as vezes de "Grande Irmão", dando as ordens e denotando grande poder de manipulação. Em tempo: John Hurt faz Winston Smith no cinema, porém diametralmente oposto ao fascista Adam Sutler, de V de Vingança, referência importante na história dos quadrinhos.

Talvez o leitor esteja se recordando de que, ainda hoje, temos uma mídia semelhante que, todas as noites, entre 19:00 e 20:00h nos traz "notícias" importantes a respeito do que o governo está desenvolvendo, bem como os últimos acontecimentos do Brasil e do mundo, de uma maneira, digamos, bastante "tendenciosa".

"Guerra é Paz
Liberdade é Escravidão
Ignorância é Força".
.: (1984)

A Inglaterra triunfará!
(V de Vingança)

O primeiro é o lema do partido autoritarista de 1984, que é bem mais pesado do que o segundo, dos quadrinhos. Porém, o objetivo é o mesmo: manter as pessoas e os acontecimentos sob controle. Sob o controle do governo.

Outra semelhança entre os textos está na questão do componente transformador de ambas as histórias: o amor. Em 1984, Smith admite todas as formas de traição, às pessoas, ao Partido e até às convicções, menos ao amor. Enfatiza que se trair seu amor por Júlia será o fim de tudo, por estará traindo a si próprio, ao que o ajuda a estar vivo e a lutar. Em V de Vingança, apesar de comer, beber, respirar ódio e vingança, a personagem V se sente transformada quando se apaixona por Evey, mostrando-se mais humanizado e atento aos movimentos da amada deixando, inclusive, a cargo dela, realizar a sua "vingança", que deixa de ser o principal combustível de sua vida.

Apesar de ser uma excelente adaptação, com um texto bastante amarrado e ágil, V de Vingança talvez desenvolva mais a vontade de vingança da personagem principal, do que uma discussão sobre liberdade e opressão, pois não deixa muito claras as diferenças entre anarquia e caos. Nesse sentido, sabemos que somente o caos não pode derrubar um regime fascista e que a implosão de prédios simbólicos não é suficiente para dar início a uma era de paz e fraternidade. Assim, percebemos que existe uma revolução, mas não uma reflexão sobre as conseqüências dessa revolução.

Porém, o que ambos os filmes nos propõem é o "despertar da apatia", uma revolução sem rosto, onde todas as pessoas são convidadas a retirarem suas máscaras: "Sob essa máscara não há só carne. Sob essa máscara existe uma idéia. E idéias são à prova de balas"!

Curiosidade sobre V de Vingança

Em uma das cenas iniciais do filme, em que V salva Evey das garras dos Homens-Dedo, há uma cena em que nosso herói se apresenta formalmente a ela, fazendo uso de um belíssimo texto.

Assumindo um tom teatral, próprio de Shakespeare, ele enuncia um discurso extremamente sonoro, no qual percebemos claramente a recorrência da letra v, nos remetendo aos sons melodiosos do Simbolismo de Cruz e Souza. Eis o texto:

"Um humilde veterano do teatro de variedades, escalado como vítima e vilão pelas vicissitudes do destino.
Esta máscara não é um mero vestígio de vaidade. É um vestígio da vox populi, que não mais existe.
No entanto, esta valente visita de um irritante ser ultrapassado, visa varrer esses vermes venais e virulentos da vanguarda do vício que permitem a viciosa e voraz violação da vontade".

Em contraponto, segue, para a apreciação da sua percepção, uma estrofe de um poema muito conhecido de Cruz e Souza, "Antífona":


Ó formas alvas, brancas, Formas claras
 
 
de luares, de neves, de neblinas!
 
Ó formas vagas, fluidas, cristalinas...
 
Incensos dos turíbulos das aras! (...)
 
 
 
"Antífona" - Broquéis – Cruz e Souza.



 
Márcia Regina Galvan Campos
Assessora técnico-pegagógica do Portal Dia-a-Dia Educação
Profª de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira


    
 
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