Disciplina - Cinema

Anjo exterminador

Cena do filme "O anjo exterminador"
Cena do filme "O Anjo Exterminador"

A moral burguesa dissecada em "O anjo exterminador", de Buñuel

A moral burguesa é, para mim, uma imoralidade contra a qual há de se lutar; esta moral que se baseia em nossas instituições sociais mais injustas como o são a religião, a pátria, a família e a cultura, em suma, o que se denomina os pilares da sociedade." Luis Buñuel

O anjo exterminador", do cineasta espanhol Luis Buñuel, foi produzido no ano de 1962 (drama, México, 93min.; P&B) e, como outros filmes do diretor, mescla real e imaginário, trabalhando fortemente com elementos da vertente surrealista, herança de seu convívio com o pintor e amigo Salvador Dalí. O Surrealismo surgiu na década de 20, em Paris, e foi denominado como um movimento artístico e literário que, como num sonho, enfatiza o papel do inconsciente na atividade criativa, pois foi muito influenciado pela Psicanálise, de Freud. Mostra-se como uma combinação do representativo, do abstrato e do psicológico. "Segundo os surrealistas, a arte deve se libertar das exigências da lógica e da razão e ir além da consciência cotidiana, expressando o inconsciente e os sonhos". (Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Surrealismo). Conhecido como um dos mestres desse estilo, na área cinematográfica, Buñuel mostra, neste filme, um trabalho surpreendente e calcado na dissecação da moral, imoral e sempre atual, da burguesia. Para isso, trabalha, magistralmente, com uma farta e rica simbologia, linha narrativa dessa película.

De modo sucinto, o filme conta a seguinte história: "Depois de uma festa de gala, os ricos convidados, por uma razão inexplicável, não conseguem deixar o local. Conforme os dias, as horas e as semanas se passam, a situação piora. As máscaras e as convenções sociais começam a ruir, revelando a falsidade e a podridão de cada pessoa". (Fonte: Adaptado de: www.video1.com.br) Para que sejamos felizes em nossa argumentação, no que se refere à simbologia que denota essa moral dissecada, é interessante que comecemos pela primeira cena do filme: a câmera passeia por uma rua, a da mansão de um rico casal que, nesse momento, recebe seus convidados para um farto jantar, e se detém, em close, na placa com o nome da rua: "Rua da Providência". Se pensarmos que o texto está repleto de símbolos que ajudam a contar a história, e que as palavras "providência", "providencial" (aquilo que vem em boa hora, oportuno) podem suscitar mais de uma leitura, temos tranqüilidade para dizer que serão "providenciais" os fatos que se desenrolarão dentro dessa mansão, acontecimentos que, de uma forma ou de outra, acabarão por modificar todas as pessoas, de forma individual e como grupo.

Aristóteles, filósofo grego, escreveu, referindo-se à tragédia grega: "essas histórias inspiram terror e piedade". Seguindo essa linha, porém de forma mais aprofundada, o filósofo brasileiro, Olavo de Carvalho, observa oportunamente: "inspirar piedade por meio do terror: purificar o homem e incliná-lo ao bem pela visão do absurdo e do mal inerentes à ordem cósmica".

Tentar "purificar e inclinar" o homem ao bem, fazendo-o atravessar momentos de extrema dificuldade, pode dar certo, e foi essa a premissa utilizada por Buñuel, buscando reabilitar as personagens dessa história, pois tratam-se de membros de uma sociedade materialista, sem nenhum interesse em transcender sua "exitosa" existência física. Apresentam variados vícios burgueses, como humilhar as pessoas mais humildes, a maledicência, a excentricidade, a calúnia. Exemplo disso é a cena em que aparecem todos, muito entediados, sentados à mesa, no início do jantar. Um garçom entra para servir o guisado maltês, tropeça e derruba toda a comida. O fato desencadeia riso geral, sonoro e, a partir daí, o clima muda completamente: todos passam a conversar alegremente sobre variados assuntos, inclusive sobre as artimanhas que exercem sobre seus próprios subalternos, denotando um claro preconceito contra a classe trabalhadora, com comentários que humilham e achincalham os menos favorecidos.

Mas, o "anjo exterminador" começa a agir, fatalmente, quando, sem motivo aparente, os empregados começam a ir embora com a chegada dos convidados. Saem apressados, como se algo de muito ruim estivesse na hora de acontecer e eles, que se mostram "bons", não podem presenciar. O único que permanece, todo o tempo, é o mordomo, uma alusão à hierarquia que essa figura exerce dentro de uma casa, pois ocupa a função de maior prestígio, igualando-se, na visão dos outros empregados, ao poder e à influência dos patrões.

Após o jantar, todos se dirigem à sala do piano e, um dos convidados, cansado, tira o fraque e a gravata, postura de transgressão à etiqueta, como se necessitasse, com urgência, se despir daquela "roupa de cena". Após muita indignação, outros homens imitam-no, se instalando, na sala, um ar de "normalidade" com o fato. A transgressão se configura até o momento em que a conduta se torna consensual. Nota-se que as mulheres também aderem, tiram os sapatos, as echarpes, as jóias, despindo-se do "glamour" que ostentavam até então.

Depois da diversão, é chegada a hora de voltar para suas casas, e alguns começam a se aprontar para ir embora. Entretanto, por mais que tentem, não conseguem sair da sala do piano, quanto mais da mansão. E esse fato inexplicável se dá com todos os presentes. Quando percebem que já estão há mais de 24 horas tentando deixar a casa, sem sucesso, as máscaras sociais começam a ruir, as pessoas passam a se mostrar como realmente são, e desentendimentos, acusações, disputas são normais entre eles. Alguns, mais exaltados, revelam segredos íntimos, ou falam sobre a vida privada de outros, perdendo completamente a compostura, uma exigência social. Nesse momento, percebemos que há uma desconstrução da psiquê das personagens, com o intuito de trazer à tona o potencial de cada uma, separando-as em boas ou más.

Toda a pomposidade vai se deteriorando para nos colocar diante do essencial, do concreto. Aparar as arestas para se promover uma limpeza. Mas aquelas pessoas possuem muito a aparar e, dessa maneira, os dias vão passando, até que o local recebe uma bandeira do exército, indicando que está de quarentena. Ninguém consegue se aproximar da casa. Param todos diante do portão. Um menino consegue dar alguns passos em direção à entrada, em virtude de sua pureza infantil. Contudo, logo volta para o portão, assustado. Do lado de fora, ninguém entende nada do que está acontecendo e se vê que a possibilidade de uma mudança, visando o bem, nem sempre se apresenta a todos com a mesma intensidade". (Fonte: http://www.oindividuo.com)

À medida que o tempo passa, pessoas morrem, outras têm alucinações ou partem para práticas mágicas, caindo vertiginosamente no vazio que eles sempre promoveram em suas vidas. A comida e a água já não existem, e os seres, famintos e desesperados, deixam aflorar seus instintos mais selvagens de sobrevivência.

É nesse momento, de desespero para saciar suas necessidades mais básicas, que vemos adentrar, o local, uma fila de dóceis cordeiros. São imediatamente atacados e devorados pelos famintos prisioneiros. Desse episódio, que traz símbolos que nos remete à tradição cristã, pode-se fazer uma leitura na qual os cordeiros simbolizam o sacrifício: "Na tradição cristã, o cordeiro simboliza o sacrifício, o que é morto em beneficio da vida de muitos. Este animal promove a expiação, a purificação de algo profanado. Através deste sacrifício, que envolve materialidade, pois é a carne que perece, têm-se como que uma porta aberta para um desenvolvimento de outro plano de ordem espiritual". (Fonte: http://www.oindividuo.com)

O urso, outro elemento da simbologia cristã, que também aparece no filme, ronda a casa, sobe nas colunas internas, mas se mostra distante das pessoas, inacessível a elas. Essa figura lhes parece inalcançável porque esse animal simboliza, entre os celtas, a autoridade espiritual, um guia espiritual e terreno. Mas a burguesia não tem guias, não segue mandamentos, preceitos, dogmas.

Outro acontecimento, bastante significativo para a trama, são as repetições que acontecem em alguns momentos do filme, como a cena em que as duas cozinheiras deixam a mansão, e a do brinde, no início do jantar, pois é a partir da repetição de toda a cena da primeira noite que os prisioneiros conseguem, enfim, a liberdade.

Depois do sacrifício dos cordeiros, em dado momento, uma das convidadas percebe que eles estão na mesma posição da primeira noite e, num átimo de lucidez, convoca a todos para que repitam os mesmos gestos e palavras daquela noite. Porém, esses gestos e palavras são, agora, feitos e ditas verdadeiramente, sem disfarces. É a chave para a libertação, pois parecem sair, transformados, para melhor, daquele circo dos horrores.

Todavia, na cena final, Buñuel nos mostra, por meio da forma oblíqua, de cima para baixo, como filma as personagens, na primeira fila da igreja, em uma missa de agradecimento, que é necessário muito mais que aparar arestas externas, deixando-nos entrever que não existe disposição interna, de cada indivíduo, para a mudança. Apresenta, também, a mesma situação de aprisionamento, agora dentro da igreja, dos fiéis e dos sacerdotes, indicando que muitos têm o benefício da salvação nas mãos, mas preferem jogá-lo pela janela.

A forma como filma aqueles homens e mulheres, com a câmera em contra-pique, conduz o observador a refletir sobre a veracidade da mudança daqueles indivíduos. Nota-se que a expressão facial de seus rostos não mudou em nada e que, com diferenças de intensidade, o orgulho e a vaidade ainda estão presentes ali. Há alguns poucos, como o anfitrião e a moça que percebeu a ‘porta simbólica’ para a saída daquele transtorno, que estão como que esperando algo. Eles são os menos embotados, contudo perecerão pelo excesso de arrogância dos outros"’. (Fonte: http://www.oindividuo.com)

Sem dúvida, esta pode ser considerada uma das obras de maior crítica à elite, descrevendo, com precisão e sem moralismos, a podridão dos costumes a que se submetem esses burgueses esnobes e tiranos, como também uma feroz crítica à Igreja, mostrando-a hipócrita e falível em suas convenções.


Marcia Regina Galvan Campos
Assessora técnico-pegagógica do Portal Dia-a-Dia Educação
Profª de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira
Recomendar esta página via e-mail: