Disciplina - Cinema

Bandido da luz vermelha


Cartaz de "O bandido da luz vermelha"

A CONSTRUÇÃO DA NARRATIVA EM "O BANDIDO DA LUZ VERMELHA": MÚLTIPLOS GÊNEROS CINEMATOGRÁFICOS


Brasil, 1968. A radicalização do governo militar encontrou resistência nas mais variadas camadas da sociedade: estudantes, trabalhadores, intelectuais e grupos armados se mobilizavam contra os ditames dos militares.

No campo cultural, o país mergulhava de cabeça num movimento político próprio: na música, a Tropicália; no teatro, as encenações do Arena e nas artes, as obras de Hélio Oiticica, buscando a afirmação de valores próprios da sociedade brasileira. Era preciso dizer “não” à supressão das liberdades políticas das pessoas, angariar maneiras e modos de enfrentar aquele estado de coisas.

No memorável ano de 1968 o mundo foi varrido pela última tempestade da Era de Aquarius. Não houve governante que por ela não fosse afetado, como não houve país onde não fosse sentida (...). Na França, Japão, Polônia, Inglaterra e Itália, jovens estavam nas ruas pedindo paz, amor e liberdade. Um conselho circulava pelo mundo: 'não confie em ninguém com mais de trinta anos'. (GASPARI, 2002: 267-268).

Na contramão da estética cinematográfica do Cinema Novo, inaugurando uma nova estética, o Cinema Marginal, meses antes do AI-5 Rogério Sganzerla inicia sua produção de longas-metragens com o polêmico “O bandido da luz vermelha”.

Em 1968, Rogério Sganzerla dirige em São Paulo o filme que pode ser considerado como ponto de transição entre a estética cinema – novista e a ruptura marginal: O Bandido da Luz Vermelha. Filmado na Boca do Lixo (dentro de um estilo em “transe” que lembra por diversas vezes a câmera de Glauber), O Bandido da Luz Vermelha ainda possui traços da produção do Cinema Novo que gira em torno da representação alegórica do Brasil e de sua história. No entanto, a forte presença do universo urbano, da sociedade de consumo e do lixo industrial gerado por essa sociedade, marca uma nítida diferença. (PESSOA RAMOS, 1990: 981)

Rodado em preto e branco e ambientado na Boca do Lixo (famoso submundo cinematográfico que revelou inúmeros bons diretores), conta a história de um criminoso que rouba os ricos e seduz as mulheres, gastando dinheiro com extravagâncias.

No roteiro, não há exageros ou apelações – características muito comuns à produção nacional de baixo custo. A história é narrada por um jogral que imita os programas de crônicas policiais das rádios AM. As cenas de ação vão formando um grande mosaico, em uma linha completamente atemporal, mas que faz todo o sentido. O clima de film noir ganha traços propositalmente caricatos. Ancorando-se no “deboche”, desfechava uma ácida crítica estética e sociopolítica à sociedade brasileira.

Com base nessa nova estética, e com o intuito de se aproximar do registro irônico, bem como deixar claro alguns tópicos formadores do Terceiro Mundo, Sganzerla mistura gêneros narrativos cinematográficos para contar a sua história, criando o filme-soma:

Meu filme é um far-west sobre o Terceiro Mundo. Isto é, fusão e mixagem de vários gêneros pois para mim não existe separação de gênero. Então fiz um filme-soma; um far-west mas também musical, documentário; policial, comédia, ou chanchada (não sei exatamente) e ficção científica. Resumindo, do documentário, a sinceridade (Rosselini); do policial, a violência (Fuller); da comédia, o ritmo anárquico (Sennet, Keaton); do western, a simplificação brutal da narrativa (Hawks) assim como o amor pelos planos gerais e os grandes espaços (Mann). (FERREIRA, 2000: 52).

“O Bandido da Luz Vermelha” tem, no gênero policial, apenas um ponto de partida, pois configura, na verdade, um painel de múltiplos gêneros, como já dissemos. Nele, assistimos a alguns movimentos regulares policialescos: busca de pistas, construção de estratégias de decifração, reconhecimento das diferentes vozes e perspectivas, combinações de dados, construção de laços entre passado e presente, exercício da razão, montagem de ensaios de compreensão tendo, principalmente na narração radiofônica, que imita um programa policial de rádio AM, e na incompetência da polícia que não consegue, ou não quer, prendê-lo, seus melhores exemplos. Denota, também, traços do faroeste, com um cowboy como personagem principal, um sujeito que vaga pela cidade com um revólver na mão, entrando e saindo de confusões.

Do Documentário traz a exploração de fatos reais, porém não se deve deduzir que este represente a realidade “tal como ela é”. O documentário, assim como o cinema de ficção, é uma representação parcial e subjetiva da realidade. Desse modo, o filme é baseado na trajetória pitoresca do bandido catarinense João Acácio Pereira da Costa, que assaltou diversas residências de pessoas ricas em São Paulo. O ladrão sempre utilizava uma lanterna vermelha (daí o apelido que ganhou da imprensa e que deu origem ao título do filme). Seu estilo desconcertava a polícia, já que seus métodos de ação eram criativos e inusitados. Além disso, João Acácio fazia questão de manter relações sexuais com as mulheres que roubava, com as quais mantinha longas conversas.

Talvez trazendo as máscaras do teatro grego: da tragédia e da comédia, o gênero Comédia, em “O bandido da luz vermelha”, é explorado de forma dual, ora nos fazendo rir das malfadadas investidas da polícia na captura do Bandido, tendo seu auge nas hilárias tentativas de decifração das cartas, que assassinam a Língua Portuguesa, remetida às autoridades, ora nos trazendo de volta a tensão que um estupro pode causar, apesar da comicidade com que ele inicia ou termina as relações: com longas e filosóficas conversas. Podem-se observar, ainda, toques da Chanchada, em cenas em que são adicionados temas tipicamente nacionais, como o jeito malandro de falar e se comportar do brasileiro.

Para finalizar, o gênero Ficção Científica é explorado quando, para distrair a atenção da população com relação ao momento político e à conduta de certos “políticos”, discos voadores aparecem na imprensa, tornando nebuloso, para o povo, também, o significado da morte do bandido e as finalidades da organização “Mão Negra”, liderada pelo político J.B.. Essas aparições misteriosas trazem especulações sobre o futuro, sobre o que está por vir “só um milgare pode salvar-nos”, diz o narrador radiofônico, numa atitude de deboche e ironia, próprias do cinema de Sganzerla, deixando clara a crítica social nas entrelinhas do texto.


Referências bibliográficas

FERREIRA, Jairo. Cinema de Invenção. São Paulo: Limiar, 2000.

GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada: as ilusões armadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

AMOS, Fernão Pessoa. História do cinema brasileiro. 2ª. ed. São Paulo : Art, 1990.


Referência na web

KASTRUP, Isabela. O bandido da luz vermelha: um filme selvagem e intuitivo. Disponível em: http://sessentaeoito.blogspot.com/2008/05/o-bandido-da-luz-vermelha-um-filme.html. Acessado em 26 jun 2009.




Marcia Regina Galvan Campos
Assessora técnico-pegagógica do Portal Dia-a-Dia Educação
Profª de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira

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