Disciplina - Cinema

O nevoeiro

Cena do filme "O nevoeiro"

Nessa película de terror, com desfecho improvável e diálogo envolvente, o medo e o suspense não são oriundos das criaturas e da sanguinolência peculiares aos filmes do gênero, mas sim da ação e da oratória fundamentadas na obra de Stephen King, base literária para o roteiro.
 
Dirigido por Frank Darabont, a trama se passa numa pequena cidade chamada Maine. Depois de uma forte tempestade, um estranho e denso nevoeiro toma conta da cidade e deixa um grupo de pessoas preso dentro de um mercado local, entre eles o artista plástico David Drayton, vivido pelo ator Thomas Jane e a extremista religiosa, Sra. Carmody, vivida, de forma deslumbrante, pela atriz Marcia Gay Harden. Essas duas personagens representarão dois grupos distintos que se formarão dentro desse mercado.
 
Para que esses grupos se formem, a narrativa coloca as personagens em situações inusitadas e o deslocamento do contexto cotidiano inverte os valores e a hierarquia construída pelas relações sociais.
 
Inicialmente, ainda antes da chegada efetiva do nevoeiro, a câmera realiza um movimento muito parecido com o das narrativas tradicionais, ou seja, apresenta as personagens que impulsionarão a história. A câmera caminha pela entrada do mercado mostrando as personagens em situações cotidianas e diálogos triviais. 

Além dos já citados David Drayton e a Sra. Carmody, também são apresentados, de maneira particular, a professora Amanda Dumfries, recém-chegada à cidade; Brent Norton, advogado e vizinho de Drayton; Ollie Weeks, funcionário do mercado; Dan Miller, um morador da cidade que, logo no começo da narrativa, anuncia o perigo do nevoeiro; Billy Drayton, filho de David; Sally, caixa do mercado; a professora aposentada Irene; o recruta Jessup e outros menos expressivos.
A mudança no contexto inicia-se com a chegada apavorada de Dan Miller ao mercado. Ele informa que um outro morador foi pego por algo, no nevoeiro e pede que fechem a porta da loja. O nevoeiro então toma conta do pátio do mercado e desencadeia, em ordem crescente, a incerteza, o medo e o pânico.
 
A primeira morte, a do garoto Norm, também funcionário do mercado, traz a certeza de que a tempestade trouxe mais que um nevoeiro, trouxe criaturas agressivas e gigantescas, como a que matou o garoto.
 
Nessa ocasião, ocorre o primeiro momento de desconstrução da estrutura social estabelecida. É um momento de tensão entre David e Jim, um outro funcionário que insiste em abrir a porta do depósito para verificar o gerador de energia.
 
O funcionário ameaça o artista plástico e afirma que este pode ter influência em outros lugares, mas ali não, ou seja, ele, o funcionário, naquele momento, está no topo da pirâmide hierárquica. Depois da discussão, Jim abre a porta e é morto.
 
À medida que as criaturas começam a aparecer efetivamente, causando dor e morte, as fraquezas e os medos das personagens também aparecem e, na mesma proporção, os mais fortes se traduzem em líderes.
 
Ainda durante a espontânea e inconsciente eleição desses líderes, outros momentos de tensão acometem o grupo, causando algumas dissidências como a do pequeno contingente liderado pelo advogado Brent Norton, que sai do mercado, mesmo sob os protestos de David.
Nesse momento, um homem se oferece para pegar uma arma num dos carros e é violentamente morto pelas criaturas, mostrando aos mais céticos que eles realmente estavam em perigo.
Diante do perigo palpável, o grupo liderado por David reforça a frente envidraçada da loja. Durante essa ação, o discurso da Sra. Carmody começa a tomar força, pois as pessoas percebem a fragilidade de suas vidas diante da ameaça no nevoeiro. Ela inicia a construção do púlpito para sua pregação.
 
Durante a narrativa, o discurso religioso da Sra. Carmody assume tons dogmáticos na mesma medida em que o medo e a iminência da morte crescem entre as pessoas no mercado. A então desequilibrada Sra. Carmody passa a representar uma alternativa de salvação e o que não merecia crédito passa a ser palavra de ordem diante do novo contexto.
 
Grandes inversões hierárquicas acontecem e uma das mais marcantes se estabelece quando Ollie diz saber atirar. O gerente do mercado ridiculariza o funcionário que prova sua habilidade e assume, naquele contexto, uma posição superior a do gerente. Aliás, a personagem Ollie será, durante toda a narrativa, um dos grandes pilares de racionalidade, dentro da insanidade criada pela incerteza e pelo medo.
 
Durante a noite o lugar é atacado por criaturas com ares pré-históricos. Algumas pessoas morrem, inclusive Sally, a jovem caixa do mercado; outros saem feridos.
 
O pânico e as mortes coadunam com o discurso cada vez mais forte e redentor da Sra Carmody, que a essa altura já arrebanha vários fiéis em busca da salvação.
Na manhã seguinte, David resolve ir até a farmácia ao lado do mercado para buscar remédios para os feridos. A Sra Carmody se opõe e diz que ele não deve sair. David e um pequeno grupo, inclusive a professora Irene, outro pilar de racionalidade na narrativa, insistem e vão até a farmácia.
 
Lá encontram os remédios, mas também encontram criaturas que mataram as pessoas que ali estavam, inclusive um soldado que havia entrado no mercado minutos antes do nevoeiro aparecer. Esse soldado, antes de morrer, aos moldes dos filmes de terror, profere as seguintes palavras: “A culpa é nossa!” O grupo perde duas pessoas antes de voltarem para o mercado. Mais um ponto para a messiânica Sra. Carmody, que profetizou a tragédia.
 
Acalmada a situação, o grupo menor, liderado por David, procura um dos três soldados que estavam no mercado, para perguntarem sobre as palavras do soldado morto na farmácia. Ele diz não saber de nada, mas se desespera ao encontrar os dois colegas enforcados.
 
Nesse momento, Jim, o funcionário que discutiu com David, no começo da narrativa, presencia o desespero do soldado e, como já se tornara discípulo da Sra. Carmody, leva o rapaz para o outro grupo de pessoas, que, incitadas pela “redentora” Sra. Carmody, esfaqueia o rapaz e o leva para fora da loja, onde é morto por uma das gigantescas criaturas.
 
A condenação acontece porque o soldado confessa que o exército estava realizando experiências e conseguiu abrir uma porta para outra dimensão. Como a palavra de ordem era “expiação”, o rapaz serviu de oferenda para comprar mais uma noite de paz. 

Diante da situação tensa que se formava dentro do mercado, o grupo de David, já se sentindo inseguro, resolve que é preciso sair e procurar ajuda. Eles resolvem ir no carro do artista, na manhã seguinte. Porém, quando amanhece, a Sra. Carmody se coloca na frente deles, impedindo a saída. 

Manipulando a turba descontrolada como um verdadeiro messias, ela resolve oferecer o filho de David, Billy, e a professora Amanda como oferendas para a expiação dos pecados. No meio da confusão desesperada, Ollie atira e mata a Sra. Carmody. A mobilização é desfeita e eles conseguem sair. 

Apenas cinco, das oito pessoas que saíram, chegam ao carro de David. Ollie e um outro senhor são mortos e o gerente volta ao mercado. 

David, Amanda, Billy, Dan e a professora Irene seguem, por horas, dentro do carro, vislumbrando um cenário de morte e devastação. Não há sinal de outros sobreviventes. 

A certa altura, param para dar passagem a uma criatura gigantesca. Os olhos esbugalhados das personagens denotam a certeza de que eles, agora, eram insetos e seriam exterminados. 

A partir daí, um diálogo mudo acontece entre as personagens que estão dentro do carro. Há uma conclusão silenciosa de que eles não conseguiriam mais viver nesse mundo, que agora parece definitivo. David conta as balas que tem na arma. São quatro. Ele olha para todos que assentem com a cabeça. Seu filho dorme no colo da professora Amanda que ainda argumenta: “Mas nós somos cinco!” Ele responde: “Eu darei um jeito.” 

A câmera, nesse momento, focaliza o carro, do lado de fora e registra quatro disparos. David grita desesperadamente e sai do carro chamando pelas criaturas em busca da morte, que trará alívio para sua dor. 

O desfecho da película traz uma ironia perversa, pois não são as criaturas que aparecem e sim o exército, restabelecendo a ordem no caos. O homem cai de joelhos, grita e chora. 

Esse desfecho é certamente discutível e chocante, mas não é incoerente. O desespero da personagem David leva ao assassinato do próprio filho. Pode ser difícil imaginar-se fazendo a mesma coisa, mas é possível encontrar na narrativa argumentos que justificam a atitude. Um deles é uma promessa que David fez, a pedido do próprio filho. Billy pediu a David que não deixasse os bichos o pegarem. O medo do filho e a certeza da impossibilidade de protegê-lo diante do ataque das criaturas podem ter levado o pai a preferir uma morte mais rápida e menos dolorosa. 

A esse argumento junta-se a certeza da devastação total do planeta, observada a partir das horas de viagem em campos destruídos. A narrativa leva a crer que todo o planeta estaria envolto no mortífero nevoeiro. 

É difícil simular o julgamento das personagens naquele contexto, porque o cinema propicia exatamente essa possibilidade: observar a dor e o desespero sem senti-los efetivamente. 

Por fim, é preciso responder a um questionamento pertinente: Por que o nevoeiro? O nevoeiro é um dos diferenciais entre um filme no estilo “Invasão das...” ou “A volta dos ...”, e The Mist, pois se não fosse o mistério, a incerteza, a sugestão criada pelo nevoeiro, o filme poderia se igualar a outro trailer qualquer de terror. Junta-se a essa característica peculiar do cenário a qualidade inerente à narrativa de Stephen King e se cria um texto impressionante, no qual o grande foco de tensão não é o ataque das criaturas ou a morte violenta, mas a conduta das pessoas dentro do mercado, que não precisam de mais que uma mudança de contexto para abdicarem de seus valores e suas crenças. 

Afinal, quem são realmente os animais? Onde estava efetivamente o perigo? Parece que a narrativa de Stephen King, levada ao cinema, provou que isso é meramente uma questão de contexto! 


Marta Ouchar de Britto
Professora da Língua Portuguesa - Mestre em Cinema e Educação

 
 



 


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