Disciplina - Cinema

Notas sobre um escândalo

Capa DVD do filme "NOtas sobre um escândalo"
Trilha Sonora: ação coadjuvante ou delatora?


Quando se assiste ao filme “Notas sobre um escândalo” (Richard Eyre, 2006, baseado no romance "Anotações sobre um escândalo" 2003, da inglesa Zoë Heller) é comum nos percebermos intrigados com a maneira como a trilha sonora é disponibilizada na narrativa. Qual o objetivo? Servir como coadjuvante da trama ou antecipar, descaradamente, as ações narrativas? 

No texto ‘Música como (P)arte da narrativa’, o maestro e diretor musical de televisão Júlio Medaglia inicialmente atribui à música uma função descritiva, seja ela feita para televisão, teatro ou cinema. Essa visão parece reduzir as possibilidades da música. Todavia, no decorrer do texto, complementa seu ponto de vista, considerando-a como uma terceira e efetiva dimensão narrativa, como um importante veículo de informações, de ideias no desenvolvimento do roteiro da ação. (MEDAGLIA: 1988, p. 274). 

Já Carrasco (1993) 

discorre sobre as potencialidades do filme, propondo os princípios da teoria dos gêneros (cunhos épico e dramático), da dramaturgia e dos fundamentos da articulação fílmica para a elaboração da trilha musical. Segundo ele, a música é uma linguagem indispensável para instigar a emoção, sendo que toda construção dramática tem por objetivo a busca do pathos, ou seja, atingir o espectador em seus níveis mais subjetivos de sentimento. 

A trilha musical em questão foi composta pelo maestro americano Philip Glass, um dos mais influentes compositores do final do século XX. Bastante requisitado, Glass compôs, também, para grandes filmes como “O show de Truman” (Peter Weir, 1998) e “As horas” (Stephen Daldry, 2002), porém, nessas películas, a trilha parece não ter a intenção de se tornar onipresente em todos os momentos, em todas as cenas, como em “Notas sobre um escândalo”. 

A música de Glass é denominada minimalista, embora ele não aprecie a expressão. O termo Minimalismo, surgido na década de 60, se refere a uma série de movimentos artísticos e culturais que percorreram diversos momentos do século XX, preocupando-se em se exprimir através de seus mais fundamentais elementos. Por meio da experimentação formal, procurava-se uma linguagem universal da arte, passível de ser absorvida por toda a humanidade. 

Na Música, o Minimalismo apresenta algumas características importantes, tais como: repetição (frequentemente de pequenos trechos, com pequenas variações através de grandes períodos de tempo) ou estaticidade (na forma de tons executados durante um longo tempo); ritmos quase hipnóticos. É baseado na harmonia consonante (intervalo estável), em pulsações constantes, no estático ou nas lentas transformações, muitas vezes na reiteração das frases musicais em pequenas unidades como figuras, motivos e células.

Isto posto, voltemos à música utilizada em “Notas sobre um escândalo”. Philip Glass compõe temas construídos com violoncelos e instrumentos de corda que, na linguagem cinematográfica, significam “suspense” – e o espectador, induzido de forma equivocada, espera que a próxima cena traga algum desdobramento sangrento do drama. Isso realmente ocorre, há uma série de desdobramentos com uma carga bastante dramática, de suspense, porém não se dá em todas as cenas nas quais a música aparece insistentemente, induzindo ao erro ou à frustração.

Um exemplo de como a trilha antecipa um acontecimento importante está na cena em que Barbara Covett (Judi Dench) descobre o caso de Sheba Hart (Cate Blanchet) com um aluno (trecho de 19’58” a 22’26”). Barbara guarda um lugar na plateia do teatro da escola para Sheba, que está atrasada. Ela resolve, então, sair à procura da amiga. Entretanto, assim que a velha professora se levanta do assento, em meio ao som de uma música apresentada por um coral da escola, as pulsações constantes e dramáticas da música “Discovery” encobrem o som ambiente e enchem a tela, com força, nos dando o tom do que está para acontecer (pois já tínhamos indícios anteriores), não deixando espaço para que o espectador tire suas próprias conclusões, inclusive por meio do movimento da câmera subjetiva, ponto de vista de Barbara. 

Na cena seguinte (22’27” a 22’40”), na qual Barbara está sentada, estática, numa cadeira, em sua casa, pensando no que fazer com a descoberta, a repetição insistente de um pequeno trecho pontiagudo, de música, nos angustia, é quase claustrofóbico, mas deixa clara qual será a sua decisão: usará a informação que possui contra Sheba, na tentativa de chantageá-la. 

Por outro lado, como em dezenas de bons filmes já realizados, que fazem da trilha sonora um recurso auxiliador do desenrolar da narrativa, somos informados, no decorrer das quatro primeiras cenas da película de Richard Eyre, de que a personagem de Judi Dench será a vilã dessa história. A câmera mostra-a, de costas, sentada em um banco de parque, sozinha, com uma aparência desfeita, amarga (0’42” a 1’15”). Mas, o que mais nos chama a atenção é o semblante carregado, de perfil, que nos é apresentando juntamente com uma música de ritmo constante, pesado, angustiante, “The history”. De pronto sabemos que se trata de uma pessoa solitária, dura, mal resolvida com suas questões mais íntimas (escreve suas angústias num diário), assim como com as questões que lhe são impostas pelo mundo. 

Entretanto, ao invés de continuar a busca por “atingir o espectador em seus níveis mais subjetivos de sentimento”, a fazer o seu papel de coadjuvante da história contada na tela, a trilha se torna cada vez mais invasiva, insistindo em comentar cada incidente da trama. E é na cena em que Sheba confessa a Barbara o seu “deslize” que a percebemos de modo mais forte: o título “Confession” abafa o excelente e difícil diálogo entre as duas, quando a jovem professora conta, em detalhes, como tudo aconteceu. “Inexplicavelmente, o diretor Richard Eyre insiste em colocar música em praticamente todas as cenas, amortizando o efeito corrosivo dos diálogos, o que torna o filme um tanto exagerado dramaticamente”. (Fonte: http://www.omelete.com.br/cine/100004209/Notas_sobre_um_Escandalo.aspx). 

A trilha de Glass se torna ainda mais supérflua devido às ótimas interpretações. Muitas vezes, a música ajuda a resolver cenas em que os atores não dão conta do recado. Certamente, não é o caso. Cate Blanchett, a professora adúltera, Bill Nighy, o marido traído, e Judi Dench, a velha cúmplice e carente, são capazes de segurar a tensão dramática a cada momento em que surgem na tela. Mas, em algumas passagens, são ofuscados pela música, tão obsessiva quanto a personagem de Dench. 

Em resumo: “Notas sobre um Escândalo” é um bom exemplo de como a música pode prejudicar um filme. O diretor recorre à trilha instrumental e minimalista de Philip Glass para reforçar a dramaticidade de quase todas as cenas, mas o resultado se torna um tanto “asfixiante”, pois a música, muitas vezes, se sobrepõe à imagem, antecipando desfechos importantes da narrativa. Para completar, no terço final, o filme se torna um tanto melodramático, investindo em um final circular, inclusive com a ajuda da música, que destoa bastante da sobriedade dos dois primeiros atos. 


Referências bibliográficas

AUMONT, Jacques et alli. A estética do filme. Campinas : Papirus, 1995.
CARRASCO, Claudiney Rodrigues. Música e articulação fílmica. Tese de mestrado. São Paulo: USP/ECA,1993.
MEDAGLIA, Júlio. Música como (P)arte da narrativa. In: Música impopular. São Paulo: Global, 1988.


Referências da Web 

BARBOSA, Paulo. Unidades Ou Elementos Formais Da Linguagem Cinematográfica. Disponível em: http://www.scribd.com/doc/12950672/Texto-Unidades-Ou-Elementos-Formais-Da-Linguagem-Cinematografica. Acessado em 11 jun 2009.
HESSEL, Marcelo. Notas sobre um escândalo. Disponível em: http://www.omelete.com.br/cine/100004209/Notas_sobre_um_Escandalo.aspx. Acessado em 12 jun 2009.
BELLEBONI, Luciene. Linguagem cinematográfica: Concurso de Inteligência ou Experiências Sinestésicas? Disponível em: http://www.ufscar.br/rua/site/?p=147. Acessado em 12 jun 2009. 



Marcia Regina Galvan Campos                      
Assessora técnico-pegagógica do Portal Dia-a-Dia Educação 
Profª de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira          


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