Disciplina - Cinema

O baile

Pôster do filme "O baile", de Ettore Scolla

Cultura Letrada

Este texto tem por objetivo fazer uma análise semiótica do filme “O baile”, de Ettore Scola, observando, detalhadamente, os signos que representam os fenômenos culturais, a representação, na natureza e na cultura, do conceito ou da ideia. 

Neste filme, cujo título original é “The bal”, obra-prima do cinema mundial, de 1983, com 112 minutos, não existem diálogos, o diretor Ettore Scola opta por nos mostrar épocas distintas da história social, política e econômica da França fazendo uso, somente, da encenação tipicamente teatral, a partir da linguagem dos signos, ou seja, da percepção de gestos, vestuário, cenários, rituais e música. 

Para isso, utiliza signos da cultura audiovisual e alguns da cultura letrada. Nas palavras de Marcos Camargo, no artigo “Cultura Letrada versus Cultura Audiovisual” (p. 6): 

“Em outras palavras, compreender a transformação do pensamento humano tendo as mídias como instrumento de mudança e mediação. Por isso, o exame mais detalhado das linguagens hegemônicas em cada período histórico permite compreender como o uso intensivo de suas mídias modela o pensamento, valores, atitudes, enfim, a cultura – que é em grande parte o produto (efeito) das linguagens veiculadas pelas mídias.” 

Com relação à linguagem escrita, o filme nos mostra a inserção de algumas palavras ou frases que têm o intuito de localizar o espectador dentro da história, como as palavras-símbolo que se encontram nas portas dos banheiros do salão de baile: Femme/Homme, símbolos convencionalizados pela cultura letrada que nos informa a respeito do toillete que deve/pode ser usado por homens e mulheres, separadamente. 

Outro indício está na música ou, mais especificamente, no nome das bandas de alguns períodos: “Blue boys band” para os anos 50/60, época da efervescência do rock and roll, que se tornou febre no mundo inteiro, tendo como ícones personalidades como Elvis Presley, Chuck Berry e Little Richards. Já nos anos 70, com a chegada do ritmo latino à Europa, a banda passa a se chamar “Los acapulcos boys”, e alegra os dançarinos com tangos, música caribenha e até com um samba brasileiro, de Ary Barroso, “Aquarela do Brasil”. 

A linguagem escrita também está presente por meio das revistas que uma das personagens folheia ao longo do filme, a qual traz diferentes títulos, entretanto sempre fazendo referência direta ao cinema e ao mundo das celebridades. Existem, ainda, os rótulos das garrafas de champagne oferecidos a um casal de burgueses, os quais indicam o bom gosto e a possibilidade de pagar por um excelente produto que as classes mais abastadas apresentam. Há, também, o close da câmera no jornal lido pelos integrantes da Frente Popular, nos dando a idéia de que muitas coisas importantes estavam acontecendo, naquele momento, pelo país afora. 

Essa mídia impressa, lógica, para se aproximar da realidade que representa e tentar nos convencer, se vale de estratégias gramaticais e semânticas, neste caso a agitação e o cenário do período histórico que está se desenrolando. 

Assim, é possível perceber que “a escrita criou o passado e com ela seus usuários tentam garrotear o futuro inscrevendo-o na regularidade seqüencial de seu pensamento verbal, traçando uma linha causal e coerente diretamente do passado”. (CAMARGO, p.19).

Cultura audiovisual 

“Ao contrário da cultura escrita, que privilegia a objetividade, racionalidade e a lógica mecanicista, assim como a impessoalidade e o distanciamento analíticos, a cultura audiovisual e sinestésica é mais subjetivante, porque aumenta a importância do indivíduo e alça o sensorial como critério de avaliação”.(CAMARGO, p. 21).

Início do baile (anos 80) 
Vemos, inicialmente, globos de espelhos brilhantes, pendendo do teto. Logo, somos apresentados ao cenário do filme: uma grande pista de dança, rodeada por mesas e cadeiras, um balcão de bebidas e uma escada ao fundo. 

Enquanto percebemos todos esses objetos, as luzes, as cores dispostas pela tela, simultaneamente, e de forma não-linear, vamos tateando o cenário aleatoriamente, tentando decifrar de que ambiente se trata, entrando em contato com o conjunto de signos que fazem parte da mise-en-scène (encenação) e, mesmo se esses indícios fossem dispostos na tela em outra ordem seqüencial, teríamos condições de saber que se trata de um salão de baile, pois, para entendermos uma imagem, em movimento ou não, abrimos mão da linearidade, tão necessária na escrita, para olharmos de forma aleatória as imagens em processo, o que aguça nossos sentidos, provocando-nos inúmeras sensações. 

Com o objetivo de embasar a inferência de que a história está, nesse momento, focada nos anos 80, destaca-se o vestuário feminino: trajes elegantes, arrojados, pessoas vestidas de diferentes estilos: taillers sóbrios, peles, brilhos, decotes e muitos acessórios modernos. 

As personagens apresentam um comportamento desprendido, ousadia no toque e nos olhares trocados entre homens e mulheres enquanto dançam. Tem-se a impressão de que os ritmos executados têm o intuito de aproximar as pessoas, fazendo-as se encontrar, perfazendo uma analogia com a sociedade moderna, exclusivista e solitária, onde as pessoas se sentem sozinhas mesmo em meio à multidão. 

A música, neste filme, não funciona apenas como trilha sonora, dando seu toque à história, mas desempenha papel de elemento narrativo, fazendo parte e apontando a sequência dos acontecimentos, pois há uma alternância de ritmos (clássicas baladas francesas, tango, disco dance, música latina, rock), que metaforizam, sonoramente, as emoções e ações das personagens, de uma forma toda particular, subjetiva, assim como heterogênea (ritmos musicais que representam uma época, um acontecimento).

Frentes Populares (1936)
Inferimos uma época de conflitos. As Frentes Populares, movimentos políticos contra a antiga Monarquia, a favor da instalação do Comunismo no país, lutam pela igualdade de direitos. 

Neste momento, e para demarcar o período, o cenário do filme se transforma. A câmera mostra, aleatoriamente, faixas de protesto e bandeiras dispostas pelo salão, ícones de representação da existência de um movimento, simultaneamente à visão de algumas pessoas, que parecem membros dessas frentes, lendo jornais. A maneira como se movimentam, gesticulam e falam, euforicamente, indica a procura e a troca de informações importantes e sigilosas. 

Entretanto, o indício mais forte da existência de membros da Frente Popular no salão é certamente a dança de roda que as personagens empreendem. De mãos dadas e com um lenço vermelho, (cor que representa metaforicamente o Socialismo), subtraem um dos companheiros para dentro da roda. Ambos se ajoelham em cima do pano escarlate, trocando um beijo ou um abraço carinhoso, o que pode simbolizar a amizade e o companheirismo, necessários em qualquer movimento. 

A invasão nazista à França é representada, respectivamente, pela chegada de um homem vestido de preto, que tem um dos olhos fechados, com uma cicatriz, e faz, com o braço direito levantado, a menção a Hitler. Nesse momento, todas as personagens que dançavam param e iniciam um movimento repetitivo de bater os pés no assoalho da pista de dança, com expressões faciais fechadas, processo pelo qual podemos concluir que se trata da resistência francesa à ocupação nazista.

Segunda Guerra Mundial (1939-1945)
A cena é aberta com o espectador ouvindo o barulho ensurdecedor dos bombardeios. Desse modo, temos condições de inferir que a França está sendo invadida e bombardeada pelos alemães. 

O cenário agora é escuro. Janelas trancadas e reforçadas com madeira, pilhas de sacos, formando barricadas nas entradas, móveis cobertos e amontoados. No chão, colchões, cobertores e travesseiros esparramados. Numa análise metafórica, esses elementos se traduzem numa clara alusão ao salão de baile ter se transformado em um refúgio seguro às personagens. As pessoas entram correndo, fugindo da tragédia, nos passando uma sensação de desespero, de impotência, por meio de gestos e expressões exaltadas. Essas imagens fazem parte de um texto altamente heterogêneo, por serem formadas por signos icônicos particulares e específicos, identificando os objetos que representam. 

Por meio de uma leitura subjetiva, que nos fornece conhecimentos estéticos e sensoriais, concluímos, como indícios da morte de inúmeros soldados na guerra, e da grande quantidade de mulheres viúvas e desamparadas, que o salão de baile está praticamente vazio, apenas duas mulheres dançam, como um par, um ritmo extremamente melancólico. 

Percebemos a continuidade da resistência francesa, simbolizada pela recusa das mulheres em dançar com um soldado alemão, acompanhado por um francês “traidor”, que participa dos conflitos internos no país, entre partidários de lados distintos. Esse elemento “traidor” usa uma capa escura, fechada, que o “esconde”, pois muda de “lado” conforme lhe convém. 

Em dado momento, ouvimos o som de sinos e as personagens se tornam extremamente alegres, se abraçando. Imediatamente deduzimos que a França fôra libertada pelos aliados. 

A comemoração é feita, novamente, com a dança de roda, porém agora o ícone utilizado é um lenço com as cores da bandeira francesa (branco, vermelho e azul) representando a vitória sobre o inimigo. O “traidor” é rechaçado dentro da roda, sendo jogado de um lado para o outro, como num corredor polonês. 

A música, agora, é alegre, apresentando um ritmo sibilante, próprio da felicidade.

Guerra da Argélia e Maio de 68 (anos 50, 60 e 70)
A Argélia, então território francês, iniciou uma série de conflitos por sua independência, em 1954. 

“O governo francês considerava criminoso ou terrorista todo ato de violência cometido por argelinos contra franceses, inclusive militares. No entanto, alguns franceses, como o antigo guerrilheiro anti-nazista e advogado Jacques Vergès, compararam a Resistência Francesa à ocupação nazista à resistência argelina à ocupação francesa. (Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Guerra_da_arg%C3%A9lia). 

Percebe-se, no baile, a alusão a esse acontecimento na figura de um homem aparentemente latino (usa um bigode e denota a maneira de se movimentar dos malandros latinos, ou talvez, ainda, represente as atrocidades cometidas pelas ditaduras na América Latina), que é levado, por gângsteres, para o banheiro. Longe de todos os olhares é brutalmente espancado e conduzido para fora do baile. 

A câmera apresenta, também, horizontalmente aos outros signos, indícios da representação do fato histórico denominado de “Maio de 1968”, no qual uma greve geral na França, desde estudantes até trabalhadores de fábricas, totalizou mais de 10 milhões de pessoas. 

“Alguns filósofos e historiadores afirmaram que essa rebelião foi o acontecimento revolucionário mais importante do século XX, por que não se deveu a uma camada restrita da população, como trabalhadores ou minorias, mas a uma insurreição popular que superou barreiras étnicas, culturais, de idade e de classe.” (Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Maio_de_1968). 

No filme, este fato é referenciado por meio da cena na qual vemos uma rebelião de estudantes empunhando tochas, invadirem uma universidade e conclamarem seus direitos. Os conflitos sucumbem, a cena é cortada, e as personagens reaparecem no salão de baile que, nesse momento, está com um cenário escuro (eles acendem as tochas), metaforizando novamente um refúgio para os rebeldes. 

Há, também, referência à liberação sexual, assim como idéias mais modernas sobre educação, sexualidade e prazer, que tem início com o Festival de Woodstock, em 1969, na cidade de Nova York. No filme, vemos, simultaneamente à pista de dança, algumas pessoas dançando ao som do rock and roll, que traz a geração de roqueiros rebeldes, personagens deitadas no chão, homens e mulheres, que fumam e bebem cerveja, fazendo gestos de “paz e amor”, como os hippies do período.
“A maioria dos insurretos de Maio de 1968 eram adeptos de ideias esquerdistas, comunistas ou anarquistas. Muitos viram os eventos como uma oportunidade para sacudir os valores da "velha sociedade", dentre os quais suas idéias sobre educação, sexualidade e prazer. Uma pequena minoria dos insurretos, como o Occident, professava ideias de direita”. (Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Maio_de_1968). 

Outra referência importante desse período, colocada na tela de forma aleatória e horizontal, é o auge dos musicais, mostrada por meio de um casal, estrelas tipicamente hollywoodianas (glamour no vestuário, nos gestos e na luz sobre eles), que dança em meio às pessoas comuns. 

A música continua atuando como elemento narrativo, trazendo os ritmos da época, bem como toda a indumentária característica (hippie, roqueira, latina): blues, jazz, rock and roll, música latina, etc. 

Por fim, podemos dizer que as linguagens tanto escrita, quanto audiovisual, auxiliam a formar nossa visão de mundo e a nossa maneira de pensar, pois são sistemas de signos que compõem a nossa cultura. Entretanto, a Era do Audiovisual nos mostra o quanto pode ser mais interessante e prazeroso assimilar conteúdos, assim como os fatos do mundo, por meio da imagem e do som, nos permitindo elevar, como critério fundamental de seleção, o sentimento e a experiência: o mundo sensorial/sinestésico.

Referências

CAMARGO, Marcos H. Cultura letrada versus cultura audiovisual.

WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Guerra da Argélia. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Guerra_da_arg%C3%A9lia. Acessado em 25 set. 2008.

WIKIPÉDIA, a enciclopédia livre. Maio de 1968. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Maio_de_1968. Acessado em 25 de set. 2008.

 

Marcia Regina Galvan Campos                      
Assessora técnico-pegagógica do Portal Dia-a-Dia Educação 
Profª de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira          

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