Disciplina - Cinema

Teorema

Cena de "Teorema", de Pasolini
Falar sobre “Teorema”, obra escrita por Píer Paolo Pasolini, com tradução de Fernando Travassos, contendo 176 páginas, é inócuo se não falarmos, primeiramente, sobre o filme que inspirou esse livro.

O filme homônimo foi lançado em 1968, no Festival de Veneza, ganhando o prêmio Office Catholique du Cinéma. Por esse trabalho, Pasolini foi amado e odiado pela crítica, ameaçado de prisão, foi tachado pela direita de “obsceno” e pela esquerda de “místico” tendo, inclusive, que devolver o prêmio concedido pela Igreja Católica.

O texto é desenvolvido como um roteiro cinematográfico, detalhando personagens (fisicamente e psicologicamente), cenários, ações, vestuário, etc. A linguagem é, muitas vezes, simbólica, metaforizada por imagens extremamente significativas tanto para o enredo, quanto para as personagens. Percebemos que se trata de uma perspectiva particular do autor/diretor a respeito da crise do capital.

Situemo-nos na Itália dos anos 60, em plena crise estrutural do capital. Uma família burguesa, representando a instância sócio-reprodutiva do capital, célula-mater da sociedade, é drasticamente abalada pela chegada de um jovem hóspede, que encerra o significado de “crise industrial, moral e familiar”. A presença do “hóspede”, como é chamado durante toda a narrativa, traz à tona toda a “aparente” estrutura e perfeição familiar, maquiada para ser um exemplo de perfeição para a sociedade:

“(...) O hóspede implode os papéis e as impostações sociais dos membros da família: o filho assume seu lado artístico; a filha Odetta, jovem introvertida, aficcionada pelo pai e pelos valores que a família representa, descobre o outro lado da vida; a matrona Lucia encontra no hóspede um escape para sua monotonia sexual; a empregada encontra no hóspede o verdadeiro senhor de seus desejos reprimidos e o industrial, Paolo, seu canal de interlocução interior. O desejo na narrativa de “Teorema” é subversivo, pois o que cada personagem descobre é uma dimensão oculta do desejo, reprimida pelas relações sociais burguesas. É a projeção do desejo que expõe (e decompõe) a interioridade de cada um. O mediador do desejo reprimido é o hóspede. É a antítese que nega a personalidade-fetiche de cada membro da família burguesa”. (FONTE)

Todos na casa, do pai à empregada, se rendem aos “encantos” do rapaz, deixando-se levar em direção aos desejos reprimidos pela sociedade burguesa, manipuladora e castradora.

Nesse sentido, é possível que façamos inúmeras leituras da obra. Entretanto, fica claro que uma das intenções do autor/diretor era fazer uma relação da crise do capital com a crise da burguesia, a completa desestrutura do capital que chega, inevitavelmente, à crise moral e familiar. As pessoas são reféns de uma moral que não as deixa respirar, ser elas mesmas, dar vazão aos seus sentimentos e desejos mais íntimos, por medo de serem repreendidos coletivamente ou de não serem aceitos como iguais, como pessoas especiais e, por isso, vencedoras. O hóspede, nesse ínterim, representa a desestruturação, a negação de todos esses princípios morais, ideologias, crenças, toda a sujeira, colocada por anos, debaixo do tapete, aparece com a força de um tornado, destruindo a tudo e a todos que passam pelo seu caminho.

“Como grupo social primordial, a família é uma das mais importantes instâncias sócio-reprodutivas do sistema do capital como forma de metabolismo societário. A partir da crise orgânica do capital, ela tende a dissolver-se ou a assumir uma forma crítica. Na verdade, o seu drama interior é o drama da reprodução do sistema sócio-metabólico do capital. O cinema soube tratar disso com desenvoltura, principalmente a partir da última metade da década de 1960. Em “Teorema”, Pasolini trata de um processo de crise estrutural que ainda estava em seus primórdios, mas que ele soube apreender com genialidade (de certo modo, é a partir de meados de 1970 que se desenvolve a crise estrutural do capital com múltiplos desdobramentos na sociabilidade burguesa). Em “Teorema”, o drama de família é o próprio drama do esgotamento da sociabilidade burguesa”.(FONTE)

Nesse momento, cabe um paralelo com o filme “Beleza Americana”, dirigido por Sam Mendes. Estamos em outra época, final dos anos 90, mas a hipocrisia da moral do American way of life pode ser percebida como a “contida” estrutura familiar e econômica italiana, maquiada para denotar somente a perfeição, o exemplo de conduta.

Em “Beleza Americana” temos uma família composta por pessoas fracassadas tanto profissionalmente, como do ponto de vista pessoal. Porém, a esposa Carolyn (Anette Bering) passa a impressão, a todos que a rodeiam, de que sua vida é perfeita, inclusive a doméstica. Por necessitar se fazer passar por uma pessoa que não é, demonstrando uma vida social e financeira que não tem, seu dia-a-dia é enlouquecedor, sempre atrás de sucesso em sua profissão, e tentando se iludir de que o marido, também fracassado, a relação matrimonial, e o comportamento de sua filha adolescente, Jane, são normais, que tudo à sua volta está dentro da normalidade perseguida pela sociedade burguesa e só assim aceita, o que a torna uma pessoa patética, sem nenhuma perspectiva de futuro, completamente frustrada.

Em “Teorema”, a completa desconstrução imposta à família de Paolo relata, de maneira escancarada e talvez agressiva, a derrocada da burguesia, que se entrega, vorazmente, aos seus instintos reprimidos. Essa burguesia não suporta mais as leis que lhe são impostas e precisa, rapidamente, se encontrar, pois está irremediavelmente perdida.

É nesse ponto e, dessa forma, que as personagens sucumbem, cada uma ao seu modo e com seus instintos e necessidades sendo exteriorizados, ao “hóspede”, que deixa a casa da mesma maneira rápida e fulminante com que chegou. Percebemos essa afirmação na cena final do livro, transposta para o filme, entretanto na ordem inversa, na qual Paolo, o poderoso capitalista, rico e bem-sucedido, deixa aos seus funcionários a imensa e rentável fábrica, e se despe, de suas roupas, em público, no metrô da cidade, se encaminhando para o deserto, onde solta um pungente e lancinante grito, como que a se despojar de todos os princípios morais e regras pelos quais era regido até então. Enfim, está livre.

Essa obra é dirigida a todas as pessoas que se deixam encantar pela sétima arte, porém em especial aos educadores que desejem saber mais sobre como é escrito um roteiro cinematográfico, sobre a linguagem fascinante do cinema, a qual se utiliza de figuras de linguagem, imagens e símbolos para se fazer entender e passar uma mensagem. É bastante interessante, ainda, para o professor perceber o momento histórico e como este é dissecado pelo autor/diretor na metáfora de um “anjo vingador”. 



 

Márcia Regina Galvan Campos
Assessora técnico-pegagógica do Portal Dia-a-Dia Educação 
Profª de Língua Portuguesa e Literatura Brasileira 


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