Disciplina - Cinema

Visitante, O

O visitante: a aventura de abrir-se aos demais

(The Visitor) Diretor: Thomas McCarthy. Richard Jenkins, Haaz Sleiman, Danai Jekesai Gurira, Hiam Abbass, Marian Seldes, Maggie Moore. 104 min.

Não é a primeira vez que me acontece isto. Ter um filme à mão, em cima da mesa, ou mesmo no computador, esperando a ocasião adequada. E não acabo de me decidir. Passa semana, entra semana, chegam outras novidades, vamos deixando para lá. Parece que não é o momento. Porque os filmes, os livros – e tantas outras coisas, o vinho por exemplo-, tem o seu tempo, se requer uma certa propensão, uma sintonia. Tal como se escolhe uma gravata –sem dar maiores explicações- ou como as mulheres escolhem a roupa, e reclamam que não tem nada que vestir, mesmo estando o guarda-roupa repleto, saindo pelo ladrão. Deve ser o meu lado feminino, este dilema de saber encontrar a ocasião certa para cada filme.


Um dos meus irmãos, seguindo as tradições cinematográficas da família –assim fomos criados, e assim continuamos nos entendendo, através de filmes- tinha me advertido que o filme era bom. Qualquer assunto relativo a um sujeito que aprende a batucar e se encontra a si mesmo. Deixe-me levar pelo racional, ao invés de confiar na sintonia que sempre acerta, e como me parecia um argumento pouco atrativo o coloquei no compasso de espera. Aliás, não é o meu forte. As poucas vezes que tentei me somar a uma roda de batuque tive de ouvir aquilo de “tem branco no samba”, comentário coberto de razão.


Também tive oportunidade de ler alguma crítica –mais inputs racionais- que situava a fita nesse universo recente, a questão dos imigrantes. Eis outro assunto que, sem nenhum desprezo, não me atrai o mais mínimo. Tem sabor de lugar comum, como a ecologia, como a globalização. Não que careçam de importância, mas confesso que não me fazem perder o sono. Fosse pouco, tinha acabado de ler um livro, (Angeles Caso: “Contra el Viento”) premio planeta de 2009, galardão notável das letras hispânicas, que as críticas também posicionaram no âmbito dos imigrantes –tema candente na Europa- e também não me entusiasmou.


Aliás, o livro, tal como o filme que nos ocupa, não é sobre imigrantes, porque a condição de outsiders é algo acessório, circunstancial. O miolo é a condição humana, o triste barro do qual estamos feitos, onde de algum modo todos somos imigrantes num mundo no qual mal sabemos nos situar. Uma realidade que enfrentamos diariamente, incorremos nos mesmos erros, nos deixamos enganar como se nunca tivéssemos lido ou vivido essa situação concreta, e não acabamos de aprender. Somos todos imigrantes, que viajam por este mundo –viatores, dizem os clássicos da Teologia- em busca da terra prometida. Resta saber se o destino é claro; mas isso já uma questão pessoal, que cada um deverá decidir, e programar no seu GPS de navegação por esta vida.


Nem imigrantes, pois, nem atração por ritmos de batucada africana, que também não são o meu forte. Mas tudo chega. Não racionalmente, mas afetivamente, com suavidade, doucement como dizem os franceses nessa expressão que envolve calma e delicadeza. Deixei o filme correr, e aos poucos minutos entendi que era o momento: tinha se produzido o arco voltaico das emoções, às minhas em ressonância com as que os fotogramas, timidamente, destilavam.


Uma circunstância fortuita cria o cenário. Um professor encerrado na sua solidão e um casal de emigrantes. A juventude e os sonhos topam com o ceticismo de quem vive acidamente, faz de conta que trabalha, vive “porque a vida dura”, no dizer de Fernando Pessoa, e não escapa às tristes consequências que adverte o poeta português: tem por vida a sepultura. As dificuldades são a faísca que desperta o professor do marasmo, obrigando-o a abrir-se aos outros. Atitude perigosa, esta que permite que os outros entrem na nossa vida –naturalmente carregando seus problemas- complicando-a, e tornando-a nova, maravilhosa, colorida. É nas aventuras onde se encontra o amor perdido, aquele que foi se esvaindo sem repararmos, nos meandros das rotinas diárias, das adversidades mal digeridas, dos desenganos que o mundo – somos todos imigrantes!- nos proporciona em cada esquina.


Conforme o filme corria, uma sensação de déjà-vu cutucava minha memória. Onde vi isto antes? Não o argumento, nem as personagens, mas a atmosfera que envolve a trama? E, de repente, enquanto surge aquela mulher atinada, de olhar cálido, discretamente distante, a lembrança golpeia a memória: Casablanca! Sim, é isso. Isto é Casablanca revisitada.


O professor entocado na sua docência, que no fundo despreza; faz de conta que trabalha e se engana a si mesmo no fingimento. Magoado pela vida, busca nas lembranças musicais, sem sucesso, o calor da mulher que amava e admirava. Tudo é falso, carece de talento para a música, é um fracassado querendo enganar o mundo com alguma conquista acadêmica. E nesse clima, acabando o filme, pareceu-me ver Rick –Bogart em Casablanca- comandando o cassino, alheio a tramas políticas e a qualquer mulher, conversando com o professor, solidário no desprezo global pela raça humana, e por eles mesmos.


Aqui é a batucada que abre a brecha no afeto impermeável do professor, lá é Sam que toca, mesmo proibido, “As times goes by”. A música é o preludio que se atreve a soltar as amarras de um coração que, sendo grande, hibernava golpeado pelo desengano. As cartas de trânsito que permitiriam voar até Lisboa, os papeis do imigrante ilegal que a polícia não admite, são o momento de envolver ambos –Rick e o professor- numa briga que nunca quiseram comprar, que não lhes diz respeito. E, depois, a presença de uma mulher que inunda a tela, uma dama com tremenda classe, que resgata a dignidade de quem tinha desistido de amar.


Atrevi-me a comentar estes desvarios com alguém. Olhou-me com desconfiança. “Não estarás forçando a situação com essa mania de interpretar filmes?” – parecia dizer-me com o olhar o meu interlocutor. Mas eu não me dei por aludido. Afinal, a arte é tal, porque é capaz de provocar um diálogo com quem a contempla. E nesse diálogo intervêm lembranças, reflexões, pensamentos e valores que nos ajudam a situar-nos no mundo. Esse é o papel da cultura, um convite para melhor entender a vida, os outros, nós mesmos. Quem atende o convite de dialogar com a arte –no caso, com o cinema- encontrará respostas para os dilemas quotidianos que a vida nos coloca.


Entende-se o meu pavor quando, sendo convidado para dar aula a alunos dos últimos anos das faculdades de medicina, ocorre-me perguntar quantos livros leem por ano. “Livros não médicos, não é professor?” Assento com a cabeça, suspeitando que coisa boa não pode vir após esse esclarecimento. “Três, quatro talvez” – costuma ser a resposta, que tomo como média de inquietude cultural. A seguir pergunto: “E quantas horas vocês gastam na Internet por dia”. Risos, cochichos, e finalmente um número de consenso: “Entre duas e três horas”. A frase que encerra os interrogatórios do júri nos filmes americanos parece-me a mais adequada como conclusão: “No further questions- não há mais perguntas”.


Nesse cenário cultural da elite universitária, creio que posso me permitir sonhar com os filmes, e viajar de um a outro, e invocar livros, pensadores, filósofos e poetas, como fazia o velho sábio, Boécio, quando escreveu “A consolação da filosofia”, intuindo a barbárie que lhe rodeava. Sim, senti Casablanca em “O Visitante”, e vivi de novo a aventura de Rick e Ilse, e lamento que outros não alcancem a viver esta experiência. A atmosfera de Casablanca envolvida em outro papel de embrulho. E isso, por não falar da cena do aeroporto, que até nisso guardam sintonia.


A abertura para os outros, romper a crosta do egoísmo, disfarçado de indiferença que protege de futuros desenganos. Esse é o recado do filme – de ambos os filmes-, esse é o desafio. Um desafio que custa, porque o eu puxa muito, demais. E nos leva a um isolamento enorme, que se engana a si mesmo com uma avalanche de comunicação fácil, rápida, através de redes sócias, mensagens eletrônicas, repletas de abreviatura e lugares comuns, e saturadas de vazio, porque espremidas, não rendem duas gotas de conteúdo.


O eu nos perde sempre, diz Jimenez Lozano, numa obra que acabo de começar, mais uma tentação que não resisti quando passei diante de uma livraria. “Los Cuadernos de Rembrandt”, assim se chama este livro encantador. E não são mais do que os diários do escritor, seu diálogo com a cultura que lhe chega ao sabor da observação da vida quotidiana. Para fazer frente a esse eu que nos devora –seja qual for a versão, a prepotente ou a sofrida, o ego, o superego ou o id, e Freud que me perdoe- somente há um antídoto: os outros, abrir-se aos outros. Fazer de vida –do viver, para ser exato na concordância gramatical- um verbo transitivo. A porta da felicidade abre-se para fora, para os demais, dizia Kierkegaard; tentar abri-la para dentro – topar-se com o próprio umbigo, novas desculpas agora para o filósofo dinamarquês- resulta em fechá-la mais ainda.


A empreitada de abrir-se aos demais custa. Não tanto pelo que supõe de compromisso–de fato complica a vida-, nem pelo investimento de tempo, pois afinal se malgastam toneladas de tempo em bobagens. Complica porque nos tira da comodidade, nos abre ao imprevisto, nos toca para fora da chamada zona de conforto, para adentrar-nos em algo que está fora do nosso controle, e do nosso pijama com chinelos: a encantadora imprevisibilidade dos outros. Essa temática está muito bem explicada –com exemplos e rigor acadêmico- numa obra que li não há muito tempo, e que não me canso de recomendar: “Ética de la hospitalidad”, de Daniel Innerarity.


Ao som do batuque do professor rejuvenescido, ou do piano de Sam em Casablanca, se nos apresenta o convite de uma revolução liberadora do eu que nos acorrenta na mesquinhez de uma existência medíocre. Um panorama que desabrocha novos horizontes na aventura de abrir-se aos demais, um risco que vale a pena correr porque ai, nessa aventura da imprevisibilidade e do serviço, encontra-se nossa riqueza. “E eu, como é que fico?” – geme o ego assustado com a perspectiva. Nas brumas do aeroporto de Casablanca, o novo Rick fecha a questão: “Nós teremos sempre Paris”. Nunca Bogart me pareceu um filósofo tão definitivo como neste momento.

Ficha técnica: (The visitor), Drama, EUA, 2008, 104min.; COR. Direção: Thomas MacCarthy.

Fonte: Dr. Pablo González Blasco: Médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002).É, também, autor de diversas publicações e trabalhos apresentados em congressos nacionais e internacionais, nos quais aborda temas de Medicina de Família, Educação Médica, Humanismo e Medicina, e Educação da Afetividade através do Cinema e das Artes. Autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) e “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005.)
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