Disciplina - Cinema

Coragem e liderança nas Cartas de Iwo Jima

Coragem e liderança nas cartas de Iwo Jima

cartas_iwo_jima_3

Assistindo “Cartas de Iwo Jima” veio à memória, por alguma curiosa associação de idéias, o livro que rendeu o Prêmio Pulitzer a John F. Kennedy, anos antes de se tornar presidente de Estados Unidos. Li o livro este ano, também por coincidência. “Profiles in courage”, escrito na convalescência de uma das muitas cirurgias de coluna a que teve de se submeter, é um esboço da vida de oito senadores americanos que souberam carregar as responsabilidades de um cidadão que ama o seu pais, e não negocia a honra. Todo ele é sobre a Coragem – “grace under pressure”; poderosa definição que Kennedy importa de Hemingway no prefácio do livro. Na dificuldade, na adversidade, forjam-se os homens de caráter. Somente quando há oposição e aperto, a coragem aparece com o seu brilho genuíno. Não sei como foram parar, no mesmo recanto da memória –ou melhor, do coração- o filme de Clint Eastwood, que canta a coragem dos japoneses e o livro de Kennedy que, por sinal, lutou contra os japoneses na guerra do pacífico. Vai ver que são as virtudes as que aproximam os homens, mais do que a nacionalidade ou os interesses bélicos. Na virtude, na coragem, se encontramos as pessoas da mesma raça, da mesma etnia da alma.

O General Tadamishi Kuribayashi é enviado para defender a ilha de Iwo Jima, ponto de honra para o império japonês. Homem culto, educado, inteligente, descobre logo nos primeiros momentos da sua chegada que aquilo é carta marcada; marcada e perdida, para o exército japonês e para a guerra. Mas a virtude do comando está presente e Kuribayashi vai fazer o melhor que pode – his best, a famosa limonada do limão, como gostam de dizer os americanos. Conhece o adversário, conviveu com ele, aprendeu a respeitá-lo. E isto –mesmo que levante suspeitas nos seus colegas oficiais- nada diminui o seu amor pelo Japão e a lealdade que deve ao Imperador. Honra e coragem, com estratégia, com inteligência, e com cuidado –verdadeiro carinho- por todos e cada um dos seus homens. 

“Capitão, estão lhe sobrando homens?” – interroga o oficial que chicoteia dois soldados surpreendidos em conversas “pouco patrióticas”. O capitão, perplexo, admite que seus recursos humanos sejam escassos. “Então não bata neles. Deixe-os sem comida, mas não os maltrate. Um capitão tem que usar o cérebro, não o chicote”. A tônica da sinfonia de coragem está colocada logo no primeiro acorde do filme. “Aqui ninguém tem o direito de morrer sem matar antes 10 americanos”. É um recado que estabelece um novo paradigma na luta. Ninguém vai se matar simplesmente para não enfrentar o inimigo ou cair prisioneiro. Somos muito mais úteis ao Imperador vivos do que mortos. Para quem está acostumado a pular fora quando o barco afunda –mesmo que o pular seja um suicídio patriótico- Kuribayashi deixa claro que patriotismo é usar a cabeça e lutar até o final, cuidando um dos outros. Sobreviver, fugir, para apresentar nova batalha, ajudar os companheiros, ir até o fim. E tudo isso se encarna num líder que cuida os detalhes, que está atento a cada homem, ao seu estado de ânimo, aos seus medos e anseios. A cultura inegável do General torna-lhe um homem sensível, e por isso um verdadeiro líder. Os homens o seguem porque vislumbram nele princípios, valores, patriotismo, e afeto. 

O barão Nishi é o outro termo desta equação de liderança. Um aristocrata, campeão de equitação, que fala inglês fluente porque morou na Califórnia, fez amizade com os artistas de Hollywood, e ganho medalhas nas olimpíadas de Los Angeles. Manda recolher um soldado americano ferido. “Matamos ele?” –perguntam os homens . “De modo algum. Cuidem dele. Vocês não gostariam de ser cuidados quando estiverem feridos?” O soldado está agonizante e guarda a carta que a sua mãe lhe escreveu. Nishi recolhe a carta do soldado já morto, e lê para os homens, traduzindo ao japonês, em voz alta: “Meu filho, não deixe de fazer o que é bom, porque é bom”. E com essas mesmas palavras, o testamento de uma mãe americana, envia os seus homens para a batalha final da qual ninguém sairá vivo: “Não esqueçam. Façam o que é bom, porque é bom”. Sem dúvida, a virtude é o que aproxima os homens e tornando-os membros da mesma família. 

“Desconfio do amor de alguém pelo amigo ou pela própria bandeira, quando vejo que não se esforça por compreender o inimigo ou a bandeira hostil.” São palavras do filósofo espanhol, Ortega y Gasset, nas suas Meditações do Quixote, escritas em 1914, muito antes da segunda guerra. Um líder no comando não é um fanático irracional, mas alguém que procura entender os motivos dos outros, do inimigo, para entender-se melhor a ele mesmo e poder ajudar os seus homens. Os tempos atuais são prolixos em exemplos contrários, que confirmam a tese de Ortega. Aqueles que vociferam amaldiçoando os outros países – os chamados xenófobos – são os que, no fundo, nada ligam para a própria nação. Tudo neles é ocasião de auto promover-se, de ser estrela; primeiro na crítica e, quando no comando, na mais descarada indiferença. Não sabem construir, são demolidores de causas alheias para instalar-se na própria mediocridade. Falta neles estofo, compromisso, densidade moral, lealdade.

O General Kuribayashi anota nos seus cadernos o diário daqueles dias que, longe de ser um passeio para os americanos, foram momentos de heróica resistência alavancada pela liderança de um homem ímpar. “Eu estarei sempre à frente de vocês”. E o grito de guerra – Banzai!!- enquanto levanta a espada de Samurai por cima da sua cabeça. Um comandante que inspira tanta confiança que quase se torna um privilégio morrer em combate ao seu lado. 

Aproxima-se o final e o general, que conhece cada um dos seus homens, pede ao padeiro Saigo que fique no quartel e queime todos os seus documentos. Poupa a vida do soldado em quem tinha lido a promessa feita à filha recém nascida, de voltar para vê-la crescer. E o padeiro, consciente da lição da história, enterra os diários do general ao invés de queimá-los. São esses cadernos que encontrados em 2005, se juntam nas memórias do Comandante em Chefe do exército imperial japonês em Iwo Jima. Clint Eastwood chega até as memórias e nos brinda este filme imperdível. Uma ocasião de ouro para refletir sobre o compromisso, as virtudes de líder, e essa coragem –graça, toneladas de graça, sob pressão- que tanta falta faz hoje e sempre.

VN:F [1.9.6_1107]
Ficha Técnica: (Letters from Iwo Jima), Drama, EUA, 2006, 140min.; COR. Direção: Clint Eastwood.

Fonte: Dr. Pablo González Blasco: Médico (FMUSP, 1981) e Doutor em Medicina (FMUSP, 2002).É, também, autor de diversas publicações e trabalhos apresentados em congressos nacionais e internacionais, nos quais aborda temas de Medicina de Família, Educação Médica, Humanismo e Medicina, e Educação da Afetividade através do Cinema e das Artes. Autor dos livros “O Médico de Família, hoje” (SOBRAMFA, 1997), “Medicina de Família & Cinema” (Casa do Psicólogo, 2002) e “Educação da Afetividade através do Cinema” (IEF-Instituto de Ensino e Fomento/SOBRAMFA, São Paulo, 2006). Co-autor dos livros “Princípios de Medicina de Família” (SOBRAMFA, São Paulo, 2003) e Cinemeducation: a Comprehensive Guide to using film in medical education. (Radcliffe Publishing, Oxford, UK. 2005.
Recomendar esta página via e-mail: