Disciplina - Cinema

Filmes & Educação

23/10/2015

Os olhos da China

Filmes do diretor Jia Zhang-ke ganham o mundo com visão crítica sobre o país.

Aos 45 anos, o chinês Jia Zhang-ke pode ser considerado um dos principais cineastas do mundo. Sua idade lhe permitiu testemunhar a transição histórica pela qual a China passou depois de 1976, com a morte de Mao Tse-tung, o fim da Revolução Cultural e a subida ao poder de Deng Xiaoping, que em poucos anos abriu o país à economia de mercado. Tanto pela importância estética quanto pela oportunidade de oferecer um olhar sobre uma realidade pouco conhecida aos olhos do mundo, os 21 filmes de Jia – entre curtas e longas-metragens, documentários e ficção – são cada vez mais vistos no exterior.

No Brasil, o interesse se comprovou recentemente com a estreia do documentário Jia Zhang-ke, um homem de Fenyang, dirigido por Walter Salles, e com o trabalho da pesquisadora Cecília Mello, professora no Departamento de Cinema, Rádio e Televisão da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). Textos de Salles, de Cecília, do crítico francês Jean-Michel Frodon e do próprio cineasta chinês compõem o livro O mundo de Jia Zhang-ke, lançado pela editora Cosac Naify simultaneamente ao filme.

Cecília concluiu este ano o projeto de pesquisa “Intermidialidade, estética e política no cinema chinês de Jia Zhang-ke” no Departamento de História da Arte da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), campus Guarulhos. Além de conduzir o projeto e criar condições para sua continuidade, a pesquisadora, que em 2014 ingressou na ECA-USP, mas manteve o vínculo com a Unifesp, deu aulas, orientou alunos e criou uma linha de pesquisa sobre o cinema chinês. O interesse pela obra de Jia deu prosseguimento a seus estudos sobre realismo cinematográfico. “Primeiramente, é um diretor com um olhar para as transformações de um país que atrai as atenções do mundo e emerge como potência, mas permanece muito misterioso e, em muitos aspectos, isolado”, diz Cecília. “Em segundo lugar, procurei entender sua busca por uma nova linguagem cinematográfica para abordar o que é novidade também no mundo real.”

Tradições
Os filmes de Jia dão conta dessas transformações mostrando personagens em trânsito, muitas vezes desgarrados de seus lugares e convívios de origem, em embate com as alterações que afetam hábitos do dia a dia. Seu terceiro longa-metragem, Plataforma (1997), que se passa em Fenyang, a cidade natal do diretor, acompanha uma trupe de artistas entre 1979, quando ainda encenavam homenagens a Mao, e o fim dos anos 1980, já quase no fim do processo de reformas de Deng. Em busca da vida (2006) mostra personagens deslocados pela construção da hidrelétrica de Três Gargantas, que submergiu várias cidades. Um toque de pecado (2013) reúne quatro histórias de violência tiradas do Weibo, o equivalente chinês do Twitter.

“Nós vemos cidades que estão sendo demolidas, memórias que estão sendo apagadas, uma população flutuante que viaja ao sabor das oportunidades econômicas, e Jia quer investigar qual é o efeito dessa transformação no indivíduo”, descreve Cecília. “Na história do cinema, em geral os momentos de pico de criatividade vêm junto com as transformações histórico-sociais. No mundo todo, hoje, o diretor em que isso aparece de modo mais forte e relevante é Jia.”

O crítico Jean-Michel Frodon destaca também, nos filmes de Jia, o questionamento dos limites entre ficção e documentário. O diretor e seus contemporâneos – a chamada sexta geração do cinema chinês – trouxeram consigo uma virada realista no panorama histórico da filmografia do país. Isso é evidente no uso de locações reais, atores não profissionais, trechos improvisados e luz natural. “Da Revolução Comunista, em 1949, até o início dos anos 1980, o cinema da China esteve preso a obrigações de propaganda e muito distante da realidade”, informa Cecília. A constante foi quebrada pela quinta geração, de diretores como Zhang Yimou (Lanternas vermelhas) e Chen Kaige (Adeus, minha concubina), que ganharam notoriedade no exterior em meados da década de 1980. “Apesar de adotarem locações reais, esses filmes ainda transcorriam num tempo a-histórico e se passavam quase exclusivamente no campo.”

Para a abordagem realista adotada por Jia foi essencial a utilização, a partir de Prazeres desconhecidos (2002), da tecnologia digital, muito mais ágil do que o trabalho com película. Isso permitiu, por exemplo, registrar em tempo real as transformações causadas pela construção da hidrelétrica no longa Em busca da vida. Paralelamente ao registro contemporâneo, Cecília procura revelar a presença, nos filmes do cineasta, de um diálogo sutil com tradições artísticas chinesas. “É um modo de chamar a atenção para a dimensão mais profunda das mudanças. Não se trata apenas de prédios demolidos, mas de toda uma tradição histórica que acaba”, diz Cecília. “O que é admirável no cinema de Jia é que ele não é nem a favor nem contra o novo ou o velho”, complementa Frodon. “Ele é capaz de mostrar e fazer o espectador sentir o que há de bom ou mau em cada aspecto. É verdade que isso é feito com uma sensação geral de perda, como quem pede mais cuidado com o antigo, que pode estar sendo destruído cegamente.”

Um exemplo da presença do antigo no cinema de Jia, apontado por Cecília, é a interação com a pintura de rolo, a tradicional arte chinesa de representação de paisagens que se desdobra horizontalmente como se narrasse uma história. Ela é evocada pelos deslocamentos laterais da câmera e pela alternância de pontos de vista dos personagens. Outra característica da pintura de rolo que encontra equivalente nos enquadramentos de Jia é a presença de espaços vazios, destinados ao preenchimento pela imaginação do observador (ou do espectador).

Proibições
A pesquisadora também estudou os pontos de contato entre os filmes de Jia e a arquitetura de jardins, uma forma de arte tradicional na China que se relaciona diretamente com o filme O mundo. O enredo se passa num parque temático em Pequim que reúne reproduções em escala menor de pontos turísticos de todo o planeta. O filme, segundo Cecília, é uma viagem espacial conduzida de acordo com os preceitos dos jardins chineses, feitos para serem vistos de cima, como mosaicos, ou, quando à altura do chão, em movimento, como uma narrativa.

Outro estudioso desse longa-metragem, o professor da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO-UFRJ) Denilson Lopes, vê nele aspectos de “transnacionalização”: os personagens principais não são os visitantes do parque, mas seus funcionários, alguns estrangeiros. “O parque é uma possibilidade de uma vida melhor, um espaço de encontro e sociabilidade, onde se caminha, trabalha-se e habita-se”, observa Lopes. “A globalização nesse caso foge à ideia de americanização ou homogeneização forçada.”

Quanto mais a pesquisadora se debruça sobre os filmes e a história de Jia Zhang-ke, mais lhe parece que o cineasta abraçou a responsabilidade de representar, em seus filmes, uma essência totalizante da China, mesmo que o lugar que o cineasta ocupa no país seja ambíguo. Seus três primeiros filmes foram exibidos em festivais internacionais, mas proibidos internamente. O mundo recebeu cortes, Em busca da vida estreou nos cinemas sem atrair muito público e Um toque de pecado nem sequer pôde estrear. No entanto, Jia é uma celebridade graças à pirataria. “Aos poucos, ele foi se tornando o cineasta mais importante da China também dentro do país”, constata Cecília. Hoje seu rosto aparece em anúncios de uísque no metrô de Pequim.

O modo como Jia conquistou o público chinês gradativamente tem a ver, para o pesquisador Isaac Pipano, com a recusa do cineasta em adotar um discurso militante. “Passando ao largo das convenções de um cinema político de denúncia e sem criticar diretamente as estruturas de poder, Jia comenta os modos de vida e as experiências mais banais do cotidiano”, diz Pipano, doutorando em cinema na Universidade Federal Fluminense, cuja dissertação de mestrado em comunicação, defendida em 2012 na UFRJ, tratou do trabalho do diretor como documentarista.

Cecília defende que Jia, embora vigiado pelo governo chinês, não se furta à incumbência de ser o principal retratista contemporâneo do país. “Apesar de toda a diversidade de idiomas e culturas da China, sempre houve um esforço oficial de manter uma ideia do país não como uma nação, mas como uma civilização”, conta a pesquisadora. “Jia nunca disse isso claramente, mas vejo em seu cinema um certo desejo de falar para toda a China. Sua intenção, por exemplo, com Um toque de pecado, foi fazer um filme que já nascesse clássico, e que pudesse ser lembrado daqui a 100 anos em seu país.”

Notícia retirada do site http://revistapesquisa.fapesp.br/. Todas as informações nela contidas são responsabilidade do autor.
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